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Euridice, Euridice: Cessa a melodia

Em dezembro de 2021, Maria Filomena Molder apresentava a primeira das suas Três Conferências: Lança o teu pão sobre as Águas (sobre o Qohélet/Ecclesiastes), afirmando a certa altura que dizer “uma vida inteira com alguém” só se pode fazer uma vez — este “toda a vida” não é cronológico, mas sobre a vida de um amor que existe.  Noutra sala do mesmo edifício estreou esta segunda-feira Euridice, Euridice (2022), a curta-metragem de Lora Mure-Ravaud em competição internacional no Indie Lisboa. 

Euridice, Euridice, Lora Mure-Ravaud ©Alva Film – 5à7Films – Preludes

É algures dentro deste amor intenso que o filme nos coloca, como um terceiro elemento, disponível para refletir sobre Ondina (Ondina Quadri) e Alexia (Alexia Sarantopoulos) bem como sobre o elo carnal e apaixonado que entre as duas resplandece. Entre o ruído lânguido dos beijos ternurentos e a beleza natural das formas e do afeto que tecem uma pela outra, situamo-nos duplamente na antiguidade clássica do mediterrâneo e na contemporaneidade de uma relação que podia ser nossa. A lira de Ondina não é a bateria que toca, mas a transparência dos seus olhos verdes, como o escudo em que Caravaggio se retratou como medusa petrificada. O que promete afastar Alexia é a imperatividade do que a faz musa, uma rodagem de um filme na Grécia. 

O filme de Lora Mure-Ravaud devolve-nos o mito de Orfeu e Eurídice, sobre os cristais de planos aproximados que nos angustiam com perguntas sobre o que já sabemos. O desaparecimento é revisitado à luz do gesto e da falta dele, contemplado como se de uma métopa se tratasse: olhamo-la alto, erguida entre belos adornos e apesar de vazia não nos poupa sentidos. Somos transportados dentro deste amor onírico, através de uma narrativa que envolve liricamente as cores e os lugares de forma a que lhe possamos quase sentir o cheiro: os estofos dos bancos de trás do carro, os lençóis frescos e profundos, o café quente da manhã, o cuidado transparente de um choro, o calor vermelho da noite, a aridez quente de um dia, em que se canta a gritar, a plenos pulmões uma dor que se aceitou. O efeito do tempo é tão magnético como tudo o resto, pela alternância entre a riqueza visual combinada com o silêncio e uma misericordiosa voz-off sobre fundo negro, que a certa altura nos vem salvar. 

“Procurar-te nos outros 

e falhar

não te encontrar 

mas ter sempre comigo 

o gigantismo da tua ausência” (Sónia Balacó).

Sebastião Casanova

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