Ao ver um filme, é praticamente impossível não começar a estabelecer inúmeras ligações com obras que achamos semelhantes, numa desenfreada tapeçaria mental (principalmente quem tem tendência a ser maniacamente apofénico). O ponto de referência óbvio que é mencionado vezes sem conta em textos sobre De Humani Corporis Fabrica, co-realizado por Lucien Castaing-Taylor e Véréna Paravel, é Near Death de Frederick Wiseman, documentário que toma como tema uma unidade de cuidados intensivos. O tema hospitalar desta obra é semelhante (explorando o quotidiano de um hospital, tanto do lado dos médicos e enfermeiros, como do dos pacientes), mas os seus aspetos mais impressionantes encontram-se na divergência deste ponto de referência.
1ª divergência: distância física
Wiseman é usualmente creditado como fazendo parte do legado do Cinema Observacional, embora este não aprecie ou concorde especialmente com esta etiqueta. Cinema Observacional (diretamente ligado a Cinema Direto e Cinema Verité) refere-se ao subgénero documental caracterizado pela abordagem “fly on the wall”, ou seja, uma separação objetiva na filmagem que “proíbe” a interação do realizador com o sujeito filmado. Onde Wiseman diverge deste estilo é na sua montagem: embora na rodagem esta abordagem seja regra, na montagem, em vez de ver todos os momentos e planos como iguais, Wiseman intencionalmente estabelece e cria uma narrativa a partir destes brutos.
De forma a conseguir seguir estas regras, certas acomodações têm de ser estabelecidas no processo técnico, independente da própria estilização do cineasta. É impossível estabelecer uma linha estrita de possível objetividade a nível social/conceptual sem o aspeto físico da realização ter de se conformar também. Não só já a nível prescritivo, mas também como resultado, a linguagem visual de Wiseman tem de se ancorar ao conceito de distância e à restrição de interação.
De Humani Corporis Fabrica nunca se propôs a tentar manter qualquer objetividade da câmara durante a rodagem, elevando-se esta do campo subjetivo para o intrusivo. A obra conjunta de Castaing-Taylor e Paravel normalmente roda no eixo do sensorial, tentando atingir uma atualização quase psicadélica do cinema háptico. Este filme não é exceção à regra, sendo esta ambição posta em serviço de uma exploração do corpo humano. O filme funciona numa estrutura de tableaux, sendo estes, na maioria dos casos, diferentes procedimentos médicos. Os cineastas apropriam-se de inovações técnicas (câmaras médicas) de forma a conseguir filmar de forma mais íntima (microscópica) os seus meandros. A partir destes métodos, o filme trabalha num eixo entre a abstração no que toca à ampliação da interioridade (algo que permite o espetador experienciar um singular espanto estético) e o concreto do que esta nova visão surreal realmente é (nunca se deixando cair na falésia da pura abstração, um efeito conseguido através da montagem de som que estabelece a omnipresença dos profissionais por detrás das cirurgias).
2ª divergência: distância emocional
Limitações físicas não são as únicas que surgem ao ser adotada uma técnica observacional nas filmagens, uma grande diferença em postura pessoal também tem de ser estabelecida. A técnica de Wiseman restringe-o de (quase) qualquer intervenção (o seu filme Law and Order inclui o célebre exemplo de uma mulher a ser estrangulada momentaneamente pela polícia, onde a sua necessidade pela documentação o impediu de intervir), ou seja, um assumir (antes da montagem) da sua presença como autor que se demonstre depois nos brutos. Claro que a sensibilidade artística e personalidade são impossíveis de ser anuladas (ora nos enquadramentos, ora na escolha do que filmar), mas o que se passa dentro dos planos em si encontra-se sem influência.
Em Near Death, Wiseman não limita o seu foco nos pacientes: o filme extremamente longo concentra-se, em grande parte, em discussões clínicas extremamente complexas e árduas nas quais a vida dos pacientes está em causa. Ao longo das suas (quase) seis horas, todas estas discussões (extremamente) pesadas são levadas ao seu esgotamento. Wiseman não interage com estas conversas, nem com o seu resultado. Em De Humanis Corporis Fabrica, os cineastas também não interagem com os médicos e enfermeiros, ou seja, nada do que acontece é encenado. No entanto, (assumidamente) não existe uma tentativa de alcançar objetividade. As escolhas dos casos são muito específicas, e a forma como são filmados exteriormente (do lado dos profissionais) é tão invasiva como a de como são filmados interiormente (do lado dos pacientes). O físico e o emocional são inseparáveis, por isso a própria escolha de posição e distanciamento da câmara acrescenta uma subjetividade a priori muito maior em comparação a Wiseman (onde a maioria desta subjetividade autoral é criada em pós-produção).
Um último momento liga estes dois lados. Algures a meio do filme, um paciente da ala de doença mental repara nos cineastas e bate à janela. A câmara pára um bocado para ver o que se passa. Perto do fim do filme, a pessoa por detrás da câmara abre a sua porta, deixando-o passear pelo hospital quando normalmente não poderia, até de novo ser levado pelos enfermeiros para o seu quarto. O filme possibilita esta pequena liberdade, mesmo que breve, e acompanha-o em registo câmara-à-mão…Um filme completamente sui generis, até agora discutido maioritariamente através da lente da inovação tecnológica (focando-se quase todo o discurso que o rodeia nas arrebatadoras representações sensoriais do processo cirúrgico). Porém, o espaço exterior é igualmente importante. A procura dos cineastas por uma ética que se mantenha transversal no registo de subjetividade, uma das suas maiores proezas, é tão presente no interior dos corpos, como no mundo que os rodeia. A ligação destas duas realidades é arrebatadora, permanente e inseparável.
Vasco Muralha