Da grande controvérsia moral sobre Fiódor Dostoiévski, que remonta a boatos do século dezanove, que o apontam como um criminoso, podemos sobretudo concluir que a separação entre a arte e a vida será sempre um campo suscitador de divisão. A Editorial Presença, tem feito um trabalho exemplar na publicação de vários volumes da obra do escritor russo, traduzidos diretamente do idioma original por Nina e Filipe Guerra, de forma responsável, pela preservação e contextualização da riqueza gramatical desde trocadilhos e outras flexões estilísticas cruciais na caracterização de uma “paisagem urbana (…) psicológica (…) que funde o estado doentio do herói (…) e combina-se perfeitamente com o estilo nervoso, tenso e irregular da escrita” (Nina e Filipe Guerra in Crime e Castigo). Em resumo, a grande sina de Dostoiévski é a caraterística loquaz com que detalha crimes e ações destiladas da perdição humana criando um universo nefasto em que a ficção e o panorama hipotético são uma visão do sublime. É provavelmente isso, que nos vários estratos sociais, desde os leitores de tabloides, aos que, como Sigmund Freud, perfilam entre os intelectuais, divide opiniões: os que censuram Dostoiévski ao considerarem que uma escrita de tal modo impressionista detalhando atos hediondos só é possível através da experiência prática, e os que lhe atribuem mérito e coragem de romper tabus, escrevendo sobre tais atos numa altura em que ninguém ousaria.
Algo que não dividirá opiniões é a fertilidade da herança de Dostoiévski na escrita cinematográfica, na qual a sombra é já uma instrução genética e a entrada de luz vai esculpindo linhas, das quais, a pouco e pouco, vamos assimilando informação. Paul Schrader movimenta-se nesse reino sombrio, de uma escrita que nos trouxe Travis Bickle, em Taxi Driver (Martin Scorsese, 1976), personagem que lhe serve de modelo e como nos diz na entrevista da Sight and Sound deste mês de junho, é inspirado por Michel, o protagonista de Pickpocket (1959),de Robert Bresson, que por sua vez, é inspirado em Crime e Castigo (1866), de Dostoiévski.
Com efeito, Schrader habituou-nos a um realismo construído com matéria psicológica, provocador de uma seriedade abrasiva, pontuada pela sedução inegável da solidão mística, no retrato do que o próprio descreve na mesma entrevista como “no longer a character you would identify with, but you already have”. Dog eat Dog (2016) manifesta-se no extremo oposto, em torno de três estarolas ex-condenados, com diferentes níveis de psicopatia, com um passado oscilante entre os dois lados das grades. Troy (Nicolas Cage), desempenha um papel administrativo, no qual, à mesa de um gangster “civilizado” de Cleveland (Paul Schrader), agenda golpes rentáveis. Mad Dog (Willem Dafoe), como o próprio nome indica, é a presença iminente da violência desenfreada. Sobre Diesel (Christopher Matthew Cook), basta apenas dizer que tem as capacidades necessárias para o que der e vier. É na personagem de Dafoe, representada nos píncaros da exuberância, que é convocada a ordem do espiritual, retratando um arquétipo de ex-condenado entre o desejo irremediável de redenção e o recorrente mergulho no mundo do crime onde encontra a segurança da única forma de vida que conhece. No decorrer de um enredo aparentemente simplório, é a imprevisibilidade sádica de Mad Dog que infunde a fatal barreira de vaticínio, separando para sempre o antes e o depois, o suspiro do erro irreparável, a prisão e a vida que continua, na paradoxal condenação de ser ex-condenado.
Sobre Dog eat Dog há mais a dizer nos créditos finais do que no próprio filme, já que é nas relações transversais com uma certa mitologia americana que consegue ser mais generoso. Não deixa de ser curioso como o autor que em tenra idade tão cerebralmente nos escreve sobre o estilo transcendental no cinema, numa admirável reflexão que após quarenta e cinco anos é ainda pertinente, assine um filme que parece rogar por anti-histamínicos, após uma reação alérgica provocada por narcóticos, pólvora e todos os molhos integrados na cultura americana, que tão frequentemente jorram na obra de Paul McCarthy.
Dificilmente central na obra de Schrader, Dog eat Dog oferece-nos a oportunidade de perscrutar um gesto confessional do realizador, ao reescrever a partir de um testemunho vital de Edward Bunker, personagem do reino do real, cuja trajetória se inicia cedo nos meandros do crime, passando “18 anos nas prisões americanas por assalto, falsificação e outros crimes” (in PÚBLICO) e se redime enquanto escritor e ator em Hollywood. Na controversa não-separação entre a arte e vida, soçobra a relação mística entre o sistema criminal americano e a iconografia cinematográfica.
Sebastião Casanova