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Entrevista com Margarida Gil: “Gosto muito de tirar o tapete às pessoas”

Com participações em Veneza (com Relação Fiel e Verdadeira, em 1987) e Locarno (com Rosa Negra, em 1992), e vencedora do Lifetime Achievement Award do Festival Internacional de Roma, em 2005, a aclamada realizadora Margarida Gil estreia-se em Berlim nesta 74ª edição com Mãos no fogo.

Os colaboradores do Cineblog Alexandre Bispo, Lílian Lopes, Nuno Gaio e Silva e Rita Pádua tiveram a oportunidade de falar com a realizadora numa conversa sobre o seu processo criativo, a produção do filme e a sua própria relação com o cinema.

Margarida Gil © Direitos Reservados

LÍLIAN LOPES: O que representa para si ter este filme em exibição na Berlinale?

MARGARIDA GIL: Representa bastante. Não é uma estreia em grandes festivais. A minha primeira longa-metragem, Relação Fiel e Verdadeira (1987), estreou em Veneza. A segunda em Locarno, em competição. Depois, em Roma. Tive algumas situações honrosas em festivais. Portanto, estou bastante habituada. Berlim é que nunca tinha vindo. Aliás, fiquei surpreendida porque Berlim, dentro dos festivais “classe A”, é o festival mais diretamente político, tematicamente muito em cima do acontecimento. Há relações no filme que são relações de poder altamente políticas, mas não no sentido direto. Recebi uma mensagem muito interessante  do Carlo Chatrian [diretor do Berlinale, que se despede este ano do festival], a dizer que tinha gostado muito do filme. O festival é uma porta de entrada, porque Portugal é um país muito ingrato, pouca gente vai às salas. Penso que vai ser importante para a circulação do filme.

RITA PÁDUA: Porque é que é tão importante para si que as pessoas em Portugal vejam o filme?

M: Não acredito que haja um único realizador português que não fique contente por ter público nas salas. Porquê, então, fazer um filme? É um trabalho de equipa, que implica o entusiasmo de todas as pessoas. Lutamos para que o filme seja visto em sala. Estou habituada a que os meus filmes tenham algum impacto e que as pessoas não fiquem indiferentes. E a este acho que não vão ficar indiferentes. Mas não o fiz com esse intuito.

R: Mãos no fogo está inserido na secção Encounters, que é conhecida por ser uma secção onde encontramos filmes que são ambiciosos de um ponto de vista estrutural e estético. De que forma acha que o filme inova dentro desta categoria?

M: Toda a gente me diz que é o melhor sítio para ter o filme. Como não tenho experiência em Berlim, não posso comparar. Acho que há uma certa exigência nos festivais em ter nomes sonantes, que mobilizem a cidade. Sei que a seleção [de Encounters] tem mais a ver com o produto cinematográfico que ali está. Menos comerciais e “mais cinema”. Para mim, não há melhor escolha.

L: O amor pelo cinema está aqui bastante presente. Como surgiu a ideia para este filme?

M: Surgem todas encadeadas. O filme começa pela leitura do conto de Henry James, The Turn of The Screw. Para encontrar um processo narrativo que me fizesse encarar aquele assunto, precisei de me afastar. Nada no Henry James é dito, é apenas mostrada a sua possibilidade. É uma novela terrível e eu quis perceber porque aquilo me perturbava tanto. Precisei de criar um discurso narrativo que não entrasse diretamente na interpretação. Ela [Maria do Mar/Carolina Campanela] vem de uma escola, filma de determinada maneira, com muitas regras e isso começa a tomar uma forma cada vez mais rigorosa. Depois, perguntei-me: porquê tantas regras? Decidi que não ia fazer assim; quis pôr isso em causa. O filme foi-se construindo muito em volta do cinema, dos princípios que podem tirar a liberdade das pessoas quando estão a construir um filme.

NUNO GAIO E SILVA: Sobre o seu processo, como é que conjugou a escrita com a realização do filme?

M: Para mim, a escrita é um processo muito importante. É, na escrita, onde eu me sinto mais livre. A partir de uma certa altura da escrita, o cinema aparece. Aparece no som, aparece nos diálogos, aparece nas formas de falar. É uma coisa muito íntima, a escrita de um filme. Com os atores, a coisa começa a tomar forma, plasticamente. É na mise-en-scéne, no papel, que nós começamos a ouvir. Aí, entra a capacidade de escuta dos diálogos: como é que as pessoas falam? O que é que é literário e o que é que não se aguenta na parte dita? Tem de haver um corte implacável. Muitas vezes, aí precisamos de alguém. Uma pessoa começa a ficar cada vez mais mergulhada dentro do filme. É preciso recuar. Os escritores todos fazem isso, pedem a outras pessoas que leiam. E depois voltam lá. É um processo até ao final: o tempo faz-se da autonomia e os filmes começam a viver e, às vezes, nós ficamos para trás.

ALEXANDRE BISPO: A Margarida fala também do trabalho dos atores, a maneira como às vezes a enunciação traz uma nova cor aos diálogos. Como foi esse trabalho, qual foi a metodologia?

M: Eu gosto muito de ensaiar com os atores, mas nunca há muito tempo. É uma pena. Nem sempre consigo, mas adoro fazer ensaios. Por exemplo, a Gracinha [interpretada por Sara Santos], conheci-a no casting uns dias antes de filmarmos. Quando a vi cantar com aquela voz, fiquei arrepiada. Ela estava sempre a rir, um riso lindo. Eu disse logo ao diretor de som: “Quero este riso o tempo todo”. Quando vi o que ela era, tirei partido. Gosto imenso de ouvir as vozes. A dicção da Rita Durão é extraordinária, ela tem uma voz melodiosa, parece que está sempre a cantar uma determinada melodia. Na montagem, isso é muito importante. A montagem é mais outro momento de construção da partitura, de tempos, silêncios… Por outro lado, quis, neste filme, que a casa falasse. Como é que uma casa fala? Fala nos silêncios. Essas partes de intervalo em que há um sopro que vem de outros sítios, inanimados. Para mim, isso é muito importante.

Mãos no Fogo, de Margarida Gil © Direitos Reservados

R: Retomou a Ponte de Lima, onde também já tinha gravado um dos seus primeiros filmes…

M: Não era para ser ali, era para ser no Douro. O turismo foi matando tudo. Esta é uma das poucas casas que ainda existe. As outras foram adaptadas para turismo de luxo. Aquela permanece igual há quatrocentos anos. Pertence a famílias que sempre viveram lá e continuam lá a habitar, mas não sei por quanto tempo. Encontrei a casa há mais de trinta anos, na altura, só tinha filmado na biblioteca, coisa que não filmei agora. Quando a vi, parecia que estava à minha espera.

R: Sente que foi um bocadinho voltar às origens?

M: Foi. Gostei disso. Senti que aquela casa era uma casa onde se passava o mal, mas que era boa. É um cubo onde nos estávamos sempre a perder, porque as referências são todas iguais. É uma casa muito estranha.

N: No filme, existe uma sugestão de conflito de uma dialética entre dois regimes de imagens, que é explícita na fala de Leonardo: “Para ti o cinema é vida, para mim a vida é o cinema”. De que forma é que se coloca nesse binómio?

M: Isso é uma questão que não posso resolver, porque, para mim, as duas coisas são verdade. Não posso dizer que para mim o cinema seja a vida, mas sei que não consigo imaginar a minha vida sem o cinema. Vivi a minha vida inteira com um grande cineasta, que era o João César Monteiro. Desde os meus dezoito, dezanove anos que a minha vida é o cinema. Para a personagem central maléfica [Leonardo/Marcello Urgeghe], que é como um “comedor”, o cinema transforma tudo em morte. É o cinema do ponto de vista do seu consumo. Para mim, isso não tem veracidade nenhuma. Ela [Maria do Mar] tem uma forma de fazer cinema em busca da realidade. Por isso, fica cega. Sou, apesar de tudo, um bocadinho menos parva. Ela acredita em tudo o que lhe interessa, procura a verdade, mas não a vê. Ele [Leonardo] sabe o que quer, filma muito bem. É um grande voyeur. E, portanto, vive no cinema. Consome. Quando filma, está a matar. Acho que essas duas visões são coisas mais profundas e difíceis de explicar.

A: Falando agora sobre o guião: em dado momento do filme, temos o acréscimo de Lourenço [Francisco Vistas], que surge como uma espécie de interesse amoroso da protagonista e surge a expectativa de que vai ser o fio condutor para fora daquela situação. Mas não é. O que é que, para si, a personagem acrescenta?

M: Durante a escrita, era uma necessidade de sair daquele mundo. Fazer um intervalo narrativo. De haver uma transformação qualquer na pessoa. Eu sou muito marota. Gosto muito de tirar o tapete às pessoas quando pensam que já estão a dominar o filme. Já estava praticamente tudo resolvido. Ela ia-se embora. O mal ficava lá. Mas não acredito nos finais felizes. O rapaz luminoso, dionisíaco, um Adónis [Lourenço/Francisco Vistas], ia buscá-la e ia-se embora. Isso não é para mim. Então, compliquei mais e achei que ela tinha de encarar, tinha de ver. Para ela ver, teve de fazer parte da visão do cinema dele. Tinha de ser comida. Foi isso que aconteceu. Transformei a inocente criatura numa participação ativa dentro daquele processo. A partir dali ela já não é a mesma. É outra pessoa.

Alexandre Bispo, Lílian Lopes, Nuno Gaio e Silva e Rita Pádua

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