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III Guerra Mundial: A simplicidade do mal

É sobre uma citação de Samuel Langhorne Clemens, amplamente conhecido pelo pseudónimo Mark Twain, que III Guerra Mundial, (2022) de Houman Seyyedi, se constrói: “A História nunca se repete, mas por vezes rima”. 

A nota de Twain transporta uma aura sorridente face à razão de simplicidade/veracidade própria do seu universo que se instala mesmo antes de conhecermos Shakib (Mohsen Tanabandeh). Perscrutamos a conversa gestual in media res entre o protagonista e a sua amiga surda-muda Ladan (Mahsa Hejazi) na qual a particular ausência de vociferação redobra a atenção para o diálogo. Shakib faz um gesto transversal ao pescoço que dispensa traduções, concluíndo o prólogo da diegese.

Shakib é um homem que sobrevive depois de perder a família num terramoto e começa a trabalhar na rodagem de um filme que reproduz o Holocausto. Sem aviso prévio, a produção recorre a ele e aos restantes operários para figurantes, no papel de prisioneiros do campo de concentração. Momentos adiante no que se virá a revelar numa espiral cáustica de eventos, o realizador decide que Shakib tem “algo” que é preciso para o papel de Hitler. 

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III Guerra Mundial, Houman Seyyedi © Leopardo Filmes

Se a frase de Twain nos deixa em mente um sorriso simples e puro, a aridez emocional que transborda do protagonista traduz um estado de sobrevivência desapegada e desapaixonada no qual a razão de viver se reduz ao automatismo do hábito. Ao entrar no deserto interior de Shakib, o espetador concebe uma realidade precária e solitária, marcada pelas características anteriormente mencionadas. Contudo, o pessimismo requintado instalado gradualmente, consegue ter um efeito peristáltico precisamente pela mesma simplicidade da nota inicial. 

As “rimas” que pululam numa coreografia inesperada, “totalmente original e chocante” (Atom Egoyan), sublevam o que entre elas se transfere en abyme, de uma forma notável, dentro e fora do ecrã: no ato de resistência que significa per se filmar-se hoje no regime opressor do Irão (na senda de Rivette mostra como este filme é em si um documento sobre a sua própria execução) bem como na abordagem dupla da reprodução do Holocausto dentro do cinema. Com efeito, dentro e fora de tela, as rimas fundem-se à luz da simplicidade inicial, condição que exalta nas imagens a frescura de uma crueldade crua. No filme dentro do filme, a reprodução do Holocausto é apenas um pretexto ao serviço do mal, uma coincidência que tem tanto de nefasta como de cândida.

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III Guerra Mundial, Houman Seyyedi © Leopardo Filmes

O traço humorístico da narrativa desdobra-se precisamente a partir destas coincidências (miméticas) mesmo à frente dos nossos olhos sem que tivéssemos aceitado vê-las. A troca de roupa dos operários de rodagem para um pijama às riscas é célere no modo como (não) os coloca numa posição tão diferente, chamando drasticamente à realidade sobre uma manipulação de expressão física que se repete. Veja-se por exemplo o plano que mostra os “prisioneiros” atrás das grades, enquanto comentam o desempenho do primeiro ator no papel Hitler antes de “sujar a roupa toda”. É nesta sequência que Shakib é escolhido a dedo pelo realizador para o papel de führer numa revelação atroz em que o vazio emocional é escolhido para ser preenchido pela figuração do abjeto — a simplicidade do mal. Em boa vizinhança com o O Grande Ditador (1940) de Chaplin (na videochamada entre Shakib e Ladan) o protagonista torna-se, por fim, na arma de Tchekhov de ambos os filmes.

Sebastião Casanova

[Foto em destaque: III Guerra Mundial, Houman Seyyedi © Leopardo Filmes]

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