“Tu és o meu assassino”, diz Ingeborg Bachmann (Vicky Krieps) a Max Frisch (Ronald Zehrfeld), o seu companheiro controlador, ciente da influência negativa daquele homem que a impede de se tornar a escritora independente e livre que pretende ser. Ingeborg Bachmann: Journey into the desert, de Margarethe von Trotta, é o filme biográfico da escritora e poeta austríaca, Ingeborg Bachmann. A realizadora alemã volta a um género que conhece bem, tendo já assinado, anteriormente, biografias como Hannah Arendt (2012) ou Searching for Ingmar Bergman (2018), entre várias outras ao longo da sua carreira.
Apesar de algo insípido e formalmente preso a um cinema convencional e comum, o filme também tem momentos de grande primor estético e surrealista. É justamente quando o filme se permite a isso, que a energia emancipadora de Ingeborg vem à tona e ficamos mais agarrados à sua história.
A proposta da realizadora alemã é contar em paralelo duas alturas distintas da vida da escritora: a primeira, quando vive com o escritor suíço Max Frisch; a outra, quando viaja pelo deserto com o seu novo amante Adolf Opel (Tobias Resch). O título do filme remete para essa viagem que, além de literal, é também metafórica. O deserto pode ser visto como símbolo de um caminho infinito e sem obstáculos pelo qual a escritora tenciona correr. Essa corrida acaba mesmo por acontecer. A dada altura Ingeborg confidencia a Adolf que sempre teve o sonho de “ter relações com vários homens, jovens e bonitos, ao mesmo tempo”. Quando esse desejo se realiza e consegue “vingar-se” da clausura onde o universo masculino a pretende encerrar, acontece mesmo essa correria livre pela paisagem deserta, da qual emana a sua alegria.
Talvez pouco conhecida fora da Alemanha, Ingeborg Bachmann é retratada neste filme como uma mulher brilhante de fulgor desafiante e corajoso, rumo à expectativa da sua total emancipação. Procurando libertar-se de um marido controlador e de feitio machista, que teima em intrometer-se na sua vida, o casamento é entendido por si como um impedimento da liberdade feminina. Entre a convenção do casamento e da vida doméstica, e a energia criativa que guarda, Ingeborg não consegue encontrar o equilíbrio, pelo que o único caminho é despojar-se dessas convenções. Ingeborg Bachmann: Journey into the desert é hábil a mostrar o exemplo de uma mulher que faz uso da sua coragem para conseguir a independência individual e criativa num mundo, como constatamos em muitas cenas, ocupado por homens. A notável interpretação de Vicky Krieps oferece momentos de enorme emoção e, apesar de, como foi dito anteriormente, o filme estar demasiado formatado na sua conceção, a realização de von Trotta é exímia e pouco há a apontar nesse sentido. Faltou apenas ser mais como Ingeborg Bachmann e desembaraçar-se corajosamente das amarras que restringem a sua força cinematográfica.
Ricardo Fangueiro
[Foto em destaque: Ingeborg Bachmann: Journey into the desert, Margarethe von Trotta © Wolfgang Ennenbach]