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Na Trafaria: reconstrução afectiva de um lugar

A recusa de materializar as “filmagens” num objecto fílmico fechado e único dá pistas sobre a motivação conceptual de um projecto como Na Trafaria (2024), de Pedro Florêncio, professor da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, de onde provém também a equipa do filme, formada por vários alunos do departamento de Ciências da Comunicação.

O documentário (termo que o realizador usa para simplificar e que optamos por usar igualmente) nasce com uma dimensão fortemente académica, associado ao projecto “T-Factor” que nasceu com o objetivo de transformar o antigo Presídio da Trafaria no novo Instituto de Arte e Tecnologia da NOVA, procurando envolver a comunidade local através de actividades académicas e artísticas. Dessa forma, o convite dirigido a Pedro Florêncio originou uma vontade de fazer um mapeamento da Trafaria de um modo alternativo, “diferente do que se vê, por exemplo, num Google Maps”1. A proposta liga-se, então, com essa tentativa de reconstruir a Trafaria enquanto espaço, oferecendo em cada projecção uma versão diferente desse mesmo lugar através de uma nova montagem. A experiência de ver é, assim, mais importante do que o objecto em si, concretizando-se num “estudo cinematográfico de natureza teórico-prática”.

Assim sendo, só podemos falar aqui da versão que foi montada exclusivamente para o Doclisboa, construída sobretudo a pensar nas pessoas que atravessaram o Tejo para ver os lugares do seu quotidiano de uma forma diferente, transformados através do cinema. Apesar de, segundo o realizador, haver mais filmagens das pessoas da Trafaria, inclusivamente a falar e a contar histórias, esta versão deixa essas sequências de fora para incidir o olhar sobre as práticas rotineiras dos trabalhadores, sobre a mecânica do seu labor e das máquinas e, sobretudo, sobre a paisagem industrial e fluvial junto ao terminal da Silopor na margem do Tejo.

Na Trafaria abeira-se de um lugar para o reconstruir afectiva e fisicamente. Como se ao entrar nos silos da Silopor, se estivesse a entrar “nos intestinos de um organismo gigante”, diz Florêncio. Entramos num corpo com uma respiração própria, que sofre uma metamorfose orgânica de projecção para projecção.

Uma vez que a abordagem é algo monocórdica, ritmada musicalmente através do som directo das máquinas, os oitenta minutos desta versão adquirem uma cadência e uma montagem coerente que apela a um estado de alerta do espectador e a uma consequente procura de significados, gestos e rimas. Dessa forma, encontramo-nos no estado para onde o filme nos quer levar: um estado de disponibilidade para o encontro com o “cinematográfico” daquele lugar. O som repetitivo da maquinaria embala-nos, não num sono profundo, mas numa hipnose de visões transfluviais. Há ideias de cinema, há uma vontade de filmar e há um despudor técnico que ultrapassa, por exemplo, a barreira do som para um regresso ao mais primitivo do cinema, sem medo do silêncio total na sequência de alguns planos. Quando o som volta, volta com força e dá mais potência ao som retumbante das máquinas que obedece à estrutura musical da montagem. Pontualmente, a beleza estética de certos planos gera esse equilíbrio essencial entre a cinematografia da paisagem e a rudeza de algumas sequências.

Na Trafaria, Pedro Florêncio © Direitos reservados

Se há espaço para se pensar no cinema mudo também há para associar este objecto às sinfonias urbanas dos anos 1920, onde, lembra o realizador, se põe “a realidade a tocar como se fosse uma sinfonia”, onde a “prosa da vida flui musicalmente”2. Há, ainda, espaço para alguns apontamentos cómicos, como se pôde constatar por algumas gargalhadas na sala, quando o mesmo plano de um trabalhador a varrer uns papéis do chão, não acertando no caixote do lixo e deixando-os cair novamente no chão, aparece três vezes na tela. A liberdade da montagem permite tal efeito.

Se, de certa forma, a montagem se encontrava já na própria rodagem, o espectador faz também a sua própria montagem ao visionar o filme, onde o processo de descoberta e exploração do espaço é mais importante do que a visão de uma narrativa linear. Essa escolha estilística coloca o filme na linhagem do cinema de Dziga Vertov, transformando estes alunos em verdadeiros “homens da câmara de filmar”. A este cinema, capaz de construir mapas alternativos da realidade, o realizador admite ainda ter servido como referência Verdes Anos (1963), de Paulo Rocha, filme que também ele pode ser visto como uma cartografia afectiva da cidade de Lisboa — uma interpretação alternativa do lugar em termos urbanísticos e ideológicos.

Por estas razões, há um lado experimental neste “contra-mapeamento” que o torna objecto para uma autêntica aula de cinema. Ao ver Na Trafaria e ao perceber as motivações por trás do trabalho realizado, estamos sempre à procura de ideias para ultrapassarmos um certo tédio do compasso rotineiro do trabalho. Isso traz resultados significativos, onde a interpretação emocional e pessoal substitui a precisão topográfica.

Esse mapa alternativo torna-se, assim, uma celebração da complexidade humana presente em cada paisagem, em cada movimento das máquinas e dos trabalhadores, e em cada detalhe da Trafaria. O resultado, que tem tanto de individual quanto de colectivo, contribui para a produção contínua de um retrato da Trafaria e para um arquivo dos gestos do trabalho.

Ricardo Fangueiro

  1.  Pedro Florêncio em entrevista à TSF (https://www.tsf.pt/7623342714/na-trafaria-o-projeto-universitario-em-que-o-cinema-vira-cartografia/) ↩︎
  2. Florêncio, Pedro. Esculpindo o Espaço, 176 ↩︎

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