Após realizar filmes como As Nuvens de Sils Maria (2014) e Personal Shopper (2016), o francês Olivier Assayas volta ao posto com o longa-metragem Hors du Temps, exibido na secção Competição na 74ª Berlinale. A escolha temporal é fundamental, o mês escolhido é abril de 2020: o começo do confinamento gerado pela pandemia do COVID-19. O realizador centraliza a narrativa na convivência entre dois irmãos, Paul (Vincent Macaigne) e Etienne (Micha Lescot), e suas respectivas namoradas, Carole (Nora Hamzawi) e Morgane (Nine D’Urso), que passam o lockdown na casa de campo dos seus falecidos pais. Se pensamos por algum momento que certas experiências vividas durante esse período foram individuais, Assayas nos mostra que estamos errados.
O filme explora a relação fraternal entre Paul e Etienne, que, na verdade, se constitui de contraposições. Paul é neurótico, tem medo de morrer por COVID e preocupa-se em higienizar todas as compras possíveis. Já Etienne enxerga o confinamento como um momento de relaxamento, longe das obrigações e não se aflige tanto no quesito higiene. Por conta de tais diferenças, a relação dos dois acontece, muitas vezes, através de discussões, que dificilmente resultam num consenso. Contudo, os diálogos estão longe de serem penosos, sendo, na realidade, efetivamente cômicos. O destaque está no personagem de Paul, uma espécie de mistura de Nanni Moretti e Woody Allen, verborrágico e paranóico ao extremo, ele tenta limpar inúmeras vezes uma panela queimada e proteger-se ao máximo do vírus, de forma a beirar o absurdo. Por outro lado, Etienne, um jornalista musical, exala um ar blasé, centrado em si mesmo.
A narrativa é permeada por memórias da infância, afinal os personagens estão vivendo na casa onde cresceram. E, ainda, reflexões sobre a vida e a arte. Tais reflexões são feitas em voz-off por Paul, enquanto vemos imagens de livros e quadros. Essa escolha poderia resultar em pleonasmos intragáveis, mas Assayas traz na fala complementos para a imagem. Em uma das considerações, Paul, cinéfilo e diretor de cinema, faz uma reflexão pertinente, utilizando as obras de Claude Monet como exemplo – explora as aproximações entre pinturas e as imagens do cinema: o cineasta como sendo, também, um pintor do mundo.
Essa reflexão pode ser vista na soma da direção de fotografia e das locações, resultando em planos que, de fato, poderiam ser comparados a pinturas. O cenário bucólico, não apenas em relação à natureza, onde a casa está localizada, mas na mise-en-scène dela, conferem um ar acolhedor, que certamente seria um oásis para qualquer um durante um confinamento.
Em termos estilísticos, Assayas opta, predominantemente, pelo uso de câmera na mão, o que nos aproxima dos personagens e concede um ar quase não ficcional, especialmente por termos vivido a pandemia num momento ainda tão recente. É um dos primeiros filmes de destaque a localizar a narrativa dentro desse momento. Entretanto, o realizador quebra a nossa imersão ao inserir explicações escritas em alguns momentos, como quando a protagonista ouve a entrevista de Jean Renoir falando sobre o seu pai e esta informação surge escrita no ecrã ou quando surge a cartela indicando no epílogo. Uma escolha que, apesar de compreensível, nos faz subir na superfície quando já tínhamos mergulhado.
Assayas chama a atenção para os planos que enquadram o tablet durante as chamadas de vídeos, uma modernização da comunicação que se transpôs para o cinema. Ocorre uma espécie de duplo enquadramento, aquele da personagem no ecrã do tablet e do aparelho no plano. Questionamo-nos se essa escolha de direção será cada vez mais comum, visto que tais tecnologias e formas de comunicar não recuarão. Uma escolha estilística que funciona, mas que gera um pouco de estranhamento, vemos um ecrã dentro de um ecrã.
Escrito no fim do primeiro lockdown, Hors du Temps é um retrato dos tempos pandêmicos e da convivência forçada que ele causou. Um filme que pode ser visto como um retrato autobiográfico de Assayas, a partir do personagem Etienne, mas que funciona na sua comicidade. Relembra-nos do confinamento como se fosse algo ocorrido há muito tempo, esquecemos dos momentos desagradáveis que vivemos e apenas rimos do que, um dia, já foi realidade.
Lílian Lopes