Entre 1946 e 1974, o poeta e antropólogo português Ruy Cinatti estabeleceu uma relação íntima com a cultura e as pessoas de Timor-Leste, na altura uma colónia portuguesa. Nas suas viagens ao sudeste asiático, reuniu um arquivo de imagens que registam o contacto da expedição portuguesa com a comunidade da ilha, documentando os seus rituais e celebrações. Para obter filmagens de lugares e ritos sagrados, teve que fazer pactos de sangue com os chefes dessas comunidades.
Foi em 2006 que ocorreu a Fernando Vendrell levar ao cinema a história e as imagens de Cinatti. Desde então, ultrapassar a dificuldade do acesso ao arquivo das filmagens de Cinatti, revelou-se uma verdadeira missão para o realizador. As imagens conservadas no Museu Nacional de Etnologia são guardadas com um cuidado minucioso e só a muito custo o realizador conseguiu utilizá-las no filme que tinha de ser feito, com ou sem elas, como nos explica em pormenor na entrevista que se segue.
Assim, em O Voo do Crocodilo – o Timor de Ruy Cinatti (2024), o público português depara-se com a história tocante de um homem particular, um comissário do Estado Novo que se apaixona por Timor e que tenta, também ele, chamar a atenção para a importância da preservação da cultura e dos costumes dos povos nativos. Não se abstendo de problematizar a visão colonialista e luso-tropicalista, o filme de Vendrell recai sobre o ponto de vista de Cinatti, do seu trabalho e da sua sensibilidade, sendo claro naquilo a que se propõe: dar a conhecer a figura de Ruy Cinatti através da sua relação com Timor, recorrendo às imagens captadas por Cinatti e Salvador Fernandes, assim como à sua poesia.
Conhecer a história do “amigo nómada” é descobrir um tesouro magnífico que pertence, como é reforçado pela investigadora Maria do Carmo Piçarra, à história do povo timorense. Às imagens de Cinatti e Salvador Fernandes, juntam-se ainda os testemunhos de Joaquim Manuel Magalhães, Vasco Medeiros Rosa, Cláudia Castelo, Joana Matos Frias, Lúcio Manuel Gomes de Sousa, Luís Cardoso de Noronha e Peter Stilwell.
Entrevista a Fernando Vendrell a propósito da estreia do filme no Doclisboa.
Ricardo Fangueiro (RF): Ruy Cinatti documentou tradições e rituais do povo de Timor-Leste, originando um conjunto de imagens que permanecem guardadas, quase ocultadas. Como foi para o Fernando, como cineasta, lidar com essa materialidade sagrada e culturalmente sensível?
Fernando Vendrell (FV): Eu tive várias fases para conseguir contactar com as imagens. As primeiras imagens que me foram mostradas na biblioteca do Museu Nacional de Etnologia (MNE) foram uns filmes feitos pela Universidade Aberta, uma espécie de montagem do material feita sob a supervisão de antropólogos. Após incessantes pedidos e após vários anos, eu tive acesso a essa montagem que me arrepiou um bocadinho, porque estava montada sem qualquer respeito pelo material e de uma forma que mostrava que não tinham arranjado funcionalidades para aquelas imagens. E chocaram-me bastante, não posso ocultar isso, porque fiquei com a sensação que o uso das imagens do Ruy Cinatti nunca poderia ter essa carga ou essa manipulação que tirasse o seu crivo dessas imagens. Depois disso pedi para ver os materiais, os brutos que estão em arquivo. São cerca de 20 horas e 30 minutos e isso demorou muito tempo. Em 2020, durante a pandemia, eu tive acesso a esses materiais no MNE, onde o analisei num monitor de televisão muito pequeno sem grande qualidade e foi aí que vi pela primeira vez as 20 horas de brutos, numa espécie de backups em DVD. Os filmes estão agendados por regiões que tinham sido localizadas entretanto e fiz uma espécie de cábula do material existente. Mais à frente, foi claro que esse primeiro visionamento que eu tinha feito e que tinha sido impactante para mim não tinha sido eficaz do ponto de vista da produção, porque os timecodes que estavam impressos nos DVD’s, não eram necessariamente os timecodes que estavam condizentes para uma possibilidade de uso. Isso fez com que tivesse que esperar mais tempo até conseguir ter acesso aos filmes no ANIM. É um material riquíssimo, muito longo, extenso, todo filmado com Paillard Bolex. Há uma introdução de um zoom em ektachrome, película reversível, e há uma introdução de melhorias técnicas, penso que na segunda jornada de filmagens. Aquilo foi filmado em duas jornadas: uma em 1961 e outra, penso que em 1962, sempre com o Salvador Fernandes… mas o material é muito extenso, muito rico, por regiões. É quase como se fosse uma viagem mítica do Ruy Cinatti por várias regiões onde ele sabe circunstancialmente o que filmar em cada região. Há muito trabalho sobre rituais, sobre festas populares e rituais de organização social, há muito trabalho também sobre arquitetura, sobre manufatura e culturas.
RF: Era a intenção inicial fazer um documentário biográfico?
FV: No início eu pensei fazer um filme que era uma espécie de deslocação pelo espaço, acompanhando os poemas do Cinatti. Era um filme muito mais abstrato e poético. Dados os constrangimentos de produção, tornou-se um filme mais biográfico. Numa primeira instância, pensando que não teríamos autorização para usar as imagens, consideramos usar as imagens filmadas por Raquel Soeiro em Timor – longas panorâmicas, muito diferentes das imagens do Ruy Cinatti e do Salvador Fernandes – a juntar a outro material que houvesse sobre Timor para ilustrar esse filme biográfico face a uma não autorização. Como acabámos por ter autorização para usar 20 minutos de imagens, a escolha foi relativamente fácil, porque as imagens pareceram-nos muito fortes e gloriosas. A maior parte do que está ali são, às vezes, pontas de bobina, restos, pequenas coisas que incluem cenas que são encenadas e que incluem o próprio Ruy Cinatti. Nesse aspecto, como o filme passou a ter esta tonalidade biográfica e o facto das limitações que tínhamos com os 20 minutos de tempo útil, nós tínhamos que ter uma forma muito assertiva de montar o material. Desde logo as imagens mais fortes e mais emocionais que me fizeram ponderar sobre a sua inclusão, até por causa da questão do MNE que não queria que essas imagens fossem divulgadas ou vulgarizadas, foram as imagens do sítio sagrado das rochas, mas em termos da narrativa ou da construção do filme era inevitável que eu tivesse que mostrar isso. Isso é um momento muito marcante na carreira do Ruy em termos pessoais e científicos como antropólogo. Por outro lado, essas imagens são muito tocantes para todos nós, porque umas imagens rupestres em Timor-Leste são em tudo muito semelhantes às imagens rupestres em França e em Portugal. São particularmente tocantes do ponto de vista humano e isso é muito importante. Por isso, nós reforçamos algumas dessas questões relativas à humanidade e usamos algum material, mas pouquíssimo, devido às limitações de tempo.
RF: Então, o MNE apenas permitiu o uso de uma parte dessas imagens?
FV: Nós usámos uma parte muito residual do arquivo. Há muito trabalho a fazer com estas imagens, mas o museu acaba por não ter capacidade em termos financeiros para tal. Há um plano para fazer um DVD, mas há sempre a questão da ausência do som. Quando falei com o José Manuel Costa, ele dizia-me que esse DVD era a prioridade do museu e que o meu filme era uma segunda prioridade. E isso durante muitos anos foi muito evidente. Entre 2006 e 2014, e depois de 2014 até 2020…é um bocado absurdo visto assim. Mas o filme é factualmente o que é. Nós usamos muito a montagem que foi feita em câmara. Só por uma questão de duração é que em alguns momentos usamos slow motion, porque não teríamos tempo de fixidez para absorver as ações. Naquele momento em que o Cinatti está a fotografar aquele token, essa imagem era muito rápida e não conseguíamos usá-la sem essa manipulação de tempo. Mas basicamente as imagens entram de uma forma crua, com os seus flashes, de uma forma factual, muito documental e real sobre esses momentos. Claro que a proposta que eu tinha de fazer um filme documental quase biográfico sobre a figura do Ruy Cinatti tinha este desafio, porque eu queria sempre fazer esse retrato através da sua descoberta de Timor, ou seja, o homem visto à luz do momento em que ele se apaixonou, entregou e identificou de uma forma brutal com Timor, o povo de Timor, a sua orografia, a sua biologia. Durante algum tempo até pensei que isto não fazia sentido, porque muitas pessoas iam falar sobre Lisboa e uma certa boémia de Lisboa, da qual Cinatti fazia parte, mas o meu eixo de olhar era sobre esse momento timorense. Foi um risco, uma tomada de posição e também nos fez lutar muito pela inclusão dessas imagens. Eu penso que faz muito sentido conhecer a figura do Ruy Cinatti a partir deste eixo da sua preocupação, do seu abraço a Timor e que o filme até faz sentido do ponto de vista de matéria de estudo ou de entendimento do poeta dessa forma.
RF: Como vê o papel de Ruy Cinatti na chamada de atenção para a preservação e estudo da cultura timorense?
FV: Após Cinatti terminar o seu curso e entre os anos 1960 e 1974, para todas as pessoas que estavam a fazer estudos na Polinésia e na Indonésia, cientistas, antropólogos que pretendiam trabalhar em Timor, o Cinatti era o portal de entrada, era através dele que eles eram orientados. Do ponto de vista social era totalmente residual. Isto passava-se numa área de investigação das juntas científicas, absolutamente complementares a esses interesses antropológicos e estudos científicos nas colónias. O que interessava eram estudos factuais que indicassem qual o tipo de culturas, qual o tipo de trabalhos, situações que tornassem as empresas e as colónias mais produtivas, numa perspetiva de colonização clássica de retirar o máximo de riquezas possíveis daqueles territórios. Hoje, há um entendimento de que as recolhas etnográficas e etnológicas feitas em Timor por estes funcionários são inapropriadas, que retiraram e adquiriram um material que é especificamente timorense, de forma lícita ou não, mas sempre prepotente, e transpuseram esses materiais para o acervo museológico em Portugal. Sendo que esses materiais pertenciam, física e espiritualmente, ao povo de Timor-Leste. E isso é um ponto de vista. O que é certo é que esse material recolhido contribuiu para um estudo muito específico, muito cuidado, feito numa ótica não colonial, mas antropológica, científica. Ao contrário do que possa parecer, há uma certa manipulação do ponto de vista do luso-tropicalismo… uma utilização das ideias do Gilberto Freire para a criação de uma cultura em que as colónias podiam ser portuguesas. Estranhamente estes materiais são puros, têm um grau de pureza que os torna suscetíveis de ter uma riqueza muito particular para Timor-Leste. Quando falo disto, falo também do material fílmico que a Maria do Carmo Piçarra, de uma forma muito revolucionária no seu depoimento no filme, diz que tem que haver uma entrega. E penso que isso é o pior pesadelo do MNE, porque percebe-se que a forma como este país [Timor-Leste] lida com as imagens, com o arquivo de Max Stahl, pondo material online, de uma forma muito indiscriminada e passível de ser utilizado, se calhar não é a forma mais correta. Há ali trabalho a ser feito, desde logo as bobines estão alternadas, há todo um material que tem que ser organizado antes de poder ser visto. Neste filme, aconteceu vermos pedaços de sequências que eram de outros excertos que já tínhamos visto. Nem isso está bem organizado após 50 anos do 25 de abril, após 40 anos da morte do Ruy Cinatti. Esse material não está trabalhado, também porque os cientistas não percebem factos de filmagem. Nós, cineastas, percebemos um bocadinho melhor como as coisas se organizavam no terreno e como as imagens foram organizadas e filmadas. Neste caso, esta organização das imagens de Timor merecia um trabalho de organização com várias pessoas que tivessem envolvidas e que pudessem compor melhor a estrutura desse material. Há coisas muito avulsas e que deviam ser organizadas de uma forma distinta.
RF: A minha pergunta seguinte ia, justamente, nesse sentido. Como tocar nas questões coloniais e do luso-tropicalismo sem descurar a complexidade da posição de Cinatti.
FV: Isso é o que me parece mais interessante: essa clivagem social, esse momento de mudança em que o Cinatti viveu é uma situação muito forte, sobre um passado colonial, sobre uma revolução de liberdade. Portanto, é uma coisa muito marcante socialmente, essas contradições e como o Cinatti procurou aplacar essas contradições, eu acho que exprime muito a sua maneira de ser.
RF: Como foi trabalhar a poesia de Ruy Cinatti no filme e a relação dessa com a sua aproximação a Timor-Leste?
FV: O Lúcio Sousa diz que a tese de doutoramento do Cinatti em Oxford nunca foi entregue. Foi sempre a postergar e a adiar. O Lúcio sente que o livro Um Cancioneiro para Timor é em si já uma tese de doutoramento do Cinatti… que é um livro de poesia. Esta dimensão que não é puramente textual e que é fotográfica e energética, isso dá-me a sensação que a minha ideia inicial fazia sentido: em que a poesia com a imagem podia fazer um filme mais abstrato e forte com um encanto muito peculiar e misterioso. Os trajetos do Cinatti em Timor estão mais ou menos marcados e referenciados. O padre Stillwell fez algum desse trabalho e sabe-se quais são as regiões e tudo. Há ali uma ideia que existe nos aborígenes na Austrália, nas culturas da América do Sul, de mudança de ciclo, de passagem para o mundo adulto, em que a linguagem de tradição oral faz os jovens passarem desfiladeiros e trajetos onde a palavra vai ser organizada com imagem. Essa era a ideia primordial do filme. Mas um cineasta tem sempre que se adaptar e eu prefiro sempre fazer o filme que posso do que não fazer nenhum e tentar dar a maior qualidade a esse filme. Estou muito satisfeito de o ter feito e de ter ultrapassado todo o imbróglio institucional com o Ministério da Cultura. Perante a hipótese de ter que devolver o financiamento, foi preferível fazer um documentário focado na figura do Cinatti, que apesar de ser uma personalidade com alguma obra publicada, alguma poesia e alguns textos antropológicos, ainda é muito desconhecida. Espero que este filme seja um canal de abertura para um maior conhecimento sobre o Ruy Cinatti e a sua obra poética que é muito forte e muito estimável.
RF: Como é que isso se articulou com a vontade de também partilhar a sua obra poética?
FV: Os poemas que eu escolhi são muito mais sobre a intimidade, principalmente os solilóquios, são poemas muito na primeira pessoa, entravados nos seus pensamentos, burilados como pequenos haikus que são ditos ao longo do filme, mas que relatam as 1001 dúvidas que uma pessoa tem, as vivências e o sofrimento que tem na sua dimensão existencial. Foi um bocadinho por aí que eu escolhi esses poemas, porque a obra era muito vasta e muito difícil. Claro que ninguém quer fazer um documentário talking heads, mas eu achei que precisava daquelas pessoas para encontro, para estar com essas pessoas. Nesse aspecto, a estrutura da montagem dá espaço a esse encontrou com cada uma dessas pessoas e eu procurei estar perto dessas pessoas, mesmo que às vezes possa parecer demasiado televisivo, filmado com dois ângulos… consegui de alguma forma contextualizar aquele momento de entrega e de dádiva sobre aquela personagem. E esse gesto, que embora possa não parecer uma iminência cinematográfica, é um gesto particular até para quem está na sala de cinema a ver o filme. Houve pessoas que não conheciam nada de Timor nem da obra de Ruy Cinatti a vir ter comigo a agradecer, que disseram que se perderam no filme, que o filme as encantou e que ficaram a saber coisas que nunca imaginaram. Não é que o filme seja eminentemente pedagógico, mas é uma contextualização fílmica e cinematográfica de uma matéria que tem uma agilidade muito forte. Sendo o meu primeiro documentário, gostei muito das possibilidades que o formato me deu. Nos filmes de ficção com tanta narrativa, os efeitos, o ritmo, as pessoas não veem tanto a relação que eu estabeleço com o material, e neste filme se calhar puderam ver mais isso, essa procura de humanidade, de uma informação que transcenda um bocadinho aquilo que nós vemos no zeitgeist do dia-a-dia.
Ricardo Fangueiro