Uma noite de trovoada no meio da vegetação densa e o ressoar dos relâmpagos, fazem lembrar as rajadas de tiros na guerra. Formigas correm, atropelando-se, seguindo o ritmo do seu trabalho, qual comunidade apressada. O cenário é a Guiné-Bissau nos dias de hoje, sob o olhar de dois cineastas portugueses, quase 50 anos depois da independência daquele país. Aos poucos, vão surgindo objectos que procuram estabelecer o olhar inevitável e protelado sobre a guerra nas antigas colónias portuguesas e os vestígios remanescentes dessa época. Seja na ficção ou no documentário, regressar a esse tema, torna-se de importância extrema, e voltar aos países africanos que tiveram sob domínio português, para perceber a evolução pós-colonial desses territórios, tem sido centro de vários filmes estreados em Portugal ao longo dos últimos anos. É o caso deste Fogo no Lodo, de Catarina Laranjeiro (investigadora do instituto de história contemporânea da NOVA FCSH), e Daniel Barroca (artista visual), que estreou na competição portuguesa do 21º Doclisboa.
Há décadas que Portugal adia um longo debate de dimensão nacional, essencial para a percepção que hoje se tem daquilo que foi essa guerra. Esse tempo vive como fantasma na nossa memória colectiva através dos testemunhos daqueles que a viveram na pele. O que é proposto em Fogo no Lodo é um olhar atento e presente em Unal, uma aldeia de produtores de arroz, onde surgiram os primeiros a envolver-se na revolta armada e na luta pela libertação da Guiné-Bissau.
O trabalho de Catarina e Daniel prende-se na tentativa de perceber a espiritualidade daquele povo e de como isso os terá conduzido para a luta. Na forma como a comunidade se organiza, nas danças dos mais jovens, nos rituais dos velhos e nos cânticos das mulheres, transparece uma comunidade que se ergue para enfrentar espectros do passado. Entre o lado religioso e político, entre aqueles que lutaram na guerra e os novos que só herdaram os testemunhos e as marcas deixadas no país, registam-se as conversas sobre as memórias da guerra, rodeadas pela beleza profunda da natureza e pelos semblantes vincados pelo tempo do trabalho na produção de arroz. Todo um ciclo de trabalho colectivo, por vezes ainda longe do nosso discernimento.
No que toca à ética de trabalho de um cineasta, há sempre uma tensão que é preciso gerir, quando a voz daquelas populações é guiada por aqueles que sempre tiveram voz. Impõe-se um olhar directo, honesto, de igual para igual, que evite cair na tentação de esteticizar e criar uma imagem baseada nas nossas concepções. É preciso se prestar a ver e ouvir. O que fica notório ao ver este filme é esse lugar da câmara e, consequentemente, o lugar do espectador. Sem intertítulos explicativos ou qualquer voz a narrar, para lá da voz dos que estão representados, Fogo no Lodo é uma sequência de cenas marcadas por essa distância, puramente observacionais do trabalho na aldeia, dos relatos sobre o passado, e dos momentos de convívio ao som da música e dos dispositivos eletrónicos que, aos poucos, invadem aquela aldeia. Há um cuidado para não se deixar deslumbrar pela beleza da natureza e das pessoas daquela aldeia. Porém, talvez essas cautelas também impeçam o filme de ir mais ao encontro da temática de que parece querer aproximar-se, acabando por transmitir uma visão contida da relação da câmara com as pessoas – ou das pessoas com a câmara -, que mesmo alguns planos mais aproximados não conseguem disfarçar. Ficamos com a ideia de que era preciso mais tempo na aldeia de Unal, para que o filme se tornasse mais do que um apanhado do quotidiano dos guineenses. Recolha valiosa sim, mas pouco cinematográfica.
O intuito de fazer uma recolha da cosmologia política de uma aldeia com cerca de 500 habitantes, reflecte-se aqui sob esse olhar antropológico, com uma fotografia cuidada, pouco saturada, e um desenho sonoro que ganha destaque pelo uso hábil das vozes e narrativas das pessoas. Vozes que, muitas vezes, só na montagem puderam entender, pela barreira imposta pela língua.
Tentando, ainda assim, ser terreno para levantar discussões prementes, sai-se da sala com a consciência de que se viu algo importante, feito com cuidado e atenção, fulcral para que o diálogo de lembranças perdure e nos consiga trazer mais conclusões e informação sobre uma guerra, cujas atrocidades e crimes, estão ainda longe da percepção pública. E em defesa do filme, talvez não possa ser de outra forma: como uma escuta atenta, sem floreados ou visões quiméricas, onde transparece a sensibilidade dos realizadores.
Ricardo Fangueiro