Após quatro anos no comitê de seleção da Berlinale, a programadora Barbara Wurm assume a seção Fórum com um compromisso reafirmado com a diversidade. Ainda que propor um recorte a partir do tema “Entre gerações, entre gêneros, entre pessoas” apresente um desafio para a imprensa, a escolha também é representativa do desejo dela, nas suas próprias palavras, “abrir caixas” ao invés de categorizar os filmes.
Fruto do trabalho de uma equipe de várias faixas etárias em um diálogo articulado contra a homogeneidade, a programação trabalha essa abertura de forma literal e figurada. No primeiro caso, a realizadora italiana Costanza Quatriglio chama atenção ao propor uma reflexão sobre o pós-guerra a partir de caixas antigas do falecido pai, em The Secret Drawer. Já no segundo, a presença da longa de ação Exuma do sul-coreano Jang Jae-hyun contesta a percepção comum da mostra como densa e pesada, apontando que filmes mais populares foram analisados em termos estéticos com especial seriedade esse ano. Segundo Wurm, existe fricção em escolher obras que poderiam estar selecionadas em outras mostras.
A presença feminina na seção se destaca por sua preponderância, dado que as realizadoras estão em maioria dentre os selecionados, e por suas múltiplas e irreverentes experimentações de linguagem. Admitido como favorito da própria programadora, Well Ordered Nature da realizadora alemã Eva C. Heldmann junta as palavras de diligência em tempos de repressão da escritora Mrs. Dorrien com imagens de arranjos florais e adolescentes contemporâneas. Já Sleeping with a Tiger da austríaca Anja Salomonowitz tenciona o conservador gênero da biografia colocando uma mulher adulta para interpretar uma personagem da infância até a velhice.
A relação do feminino com o ambiente de trabalho praticamente cria um subtópico na seção. Nesse caso, há um esforço notável em acrescentar filmes sobre mulheres da classe trabalhadora às obras de outras mais privilegiadas que integram a classe artística. A longa Oasis of Now, do malaio Chia Chee Sum, debruça-se sobre uma imigrante vietnamita na Malásia que, apesar de falar cinco línguas, permanece circunscrita às responsabilidades da família e do trabalho doméstico. Em contrapartida, Mother and daughter, da realizadora geórgica Lana Gogoberidze, trata a chance do exercício profissional do cinema como uma prática coletiva de cuidado e ternura.
Ao ser condecorada pela expressiva e ao mesmo tempo esperada representatividade, Wurm lança uma provocação a respeito do perfil da seção e as possibilidades das mulheres autoras na 7ª arte. Segundo Barbara, a assiduidade delas no enfoque de audiovisual independente que contorna o Fórum é também demonstrativa de suas dificuldades em encontrar financiamentos maiores. Como se, no atual esquema, a perspectiva feminina fosse desejada, mas só até uma certa quantia e tamanho. Ainda que os dados apontem reiteradamente para as desigualdades, a própria programadora reconhece a timidez das iniciativas tomadas no mercado de festivais e nas linhas de financiamento.
Em virtude disso, é impossível dissociar as escolhas do Fórum de um ponto de vista político, refletido em maior escala no tema Especial “Relações e Resistencia”. Ainda que Wurm também perceba o conceito de cinema político como algo a não ser categorizado. Seu ponto de vista é que mesmo os filmes mais pessoais, que costumam a tratar de relações familiares e românticas, estão imbuídos de um comentário social sobre seu espaço-tempo. Desviando do discurso pronto e amigável, ao algoritmo que virou cartilha nas recentes produções norte-americanas, a seção e o festival como um todo convidam a experimentação e a alteridade. Se o objetivo é mudar o mundo ou apenas abrir as caixas para os filmes e os debates para além dos filmes, a programadora afirma que tudo começa com eles.
*O presente texto encontra-se escrito em português do Brasil.
Alexandre Bispo