Les Îles, de Yann Gonzalez, é uma reinterpretação erótica de La Ronde, de Arthur Schnitzler. A estrutura desta peça de teatro consiste no conhecimento de um vasto elenco de personagens através dos encontros sexuais em que cada uma se envolve: a+b, b depois encontra c, c encontra d, etc… No fim da peça, a última personagem vai de encontro à primeira, completando o movimento circular do título. Na curta metragem de Gonzalez, o erotismo é elevado ao máximo e a narrativa ao mínimo. Enquanto na peça original a estrutura e temática é orientada principalmente a um comentário social (personagens de diversos estratos sociais que se encontram devido ao desejo sexual), no filme em causa a estrutura é utilizada para abstrata e eroticamente explorar sexualidade e fantasia de forma livre.
Na primeira cena, um casal heterossexual faz sexo até ser interrompido por um “monstro” – homem de latex vermelho (caracterização assumidamente artificial) que estes prontamente aceitam. Há uma beleza profunda no reconhecimento e paixão por esta artificialidade por parte do cineasta, como pode ser visto na imagem em baixo: O orifício da boca não mexe, apenas se vê a língua a aparecer por detrás da máscara rígida.
Enquanto a peça original é um ácido comentário social, esta curta metragem quase que nega intelectualização fora do seu formalismo, deixando as personagens moverem-se livremente (quase) sem traços narrativos, mesmo que no fim o círculo se complete. A obra parece uma filtração de fantasias e desejo sexual através de fetiches cinematográficos, que, embora não sexuais, parecem igualmente matéria do subconsciente. Gonzalez doma os desejos ctónicos através do seu consciente trabalhar da forma cinematográfica. Esta rejeição de narrativa ou de explicação dos símbolos (ou sequer de tentar atribuir ou explicar qualquer significação óbvia a estes) aproxima o filme a uma tactilidade do desejo, não podendo funcionar de outra forma.
Na curta de 2022 do mesmo realizador, Hideous, parece que todos os méritos de Les Îles são invertidos. Em primeiro lugar, é importante mencionar que a obra é de certa forma um “visual álbum”, ilustrando e criando um acompanhamento visual e sonoro para três músicas em sucessão de um álbum de Oliver Sim. No entanto, o filme não se limita a ser um produto publicitário: cria uma narrativa a partir das três músicas e é muito explicitamente “Um Filme de Yann Gonzalez”, a sua tentativa de fazer uma curta-metragem musical. É apresentado como tal e mesmo em festivais foi mostrado como uma obra como qualquer outra do realizador (mesmo que colaborativa). Desta forma, não deve então ser julgado por parâmetros especiais.
Que fique claro: para transmitir a imaterialidade fugaz do desejo, um filme não tem de ser não-narrativo ou abstrato. No entanto, parece que Gonzalez tem dificuldade em conjugar os dois aspetos. O seu capricho pela forma cria uma sucessão fluída de imagens ao ser aplicada ao sub/inconsciente, quando existe uma tentativa de o estruturar, grande parte da sua força é perdida. A primeira obra mencionada vai além da negação de narrativa, há uma negação de mensagem: pura fantasia sensorial. Ao conjugar letras musicais muito explícitas com uma narrativa muito direta e gritante através das imagens e sons que escolhe, há uma obviedade no gesto que causa aversão.
As referências queer usadas são todas maravilhosas, mas para que serve uma boa variedade de referências se não são tratadas com qualquer profundidade ou interesse único? Para mostrar o quão interessante o cineasta é pessoalmente? Em Les Îles a verbalização do subterrâneo é feita pelo movimento fluído de pessoas e identidades, com poucas palavras, apenas o toque. A euforia é transcendental e não verbal. Ao conscientemente filtrar esta euforia não material através de referências, em junção com o quão literais as letras são, o filme pouco tem valor para quem não é já fã ferrenho das músicas.
Em último lugar, é importante discutir a polarização da sexualidade nos dois filmes. Enquanto no primeiro esta é definida pelo ato sexual e as poucas referências (exemplo: monstro latex) aparecem como partes de um universo erótico, aqui a sexualidade é transmitida quase só pelas suas referências culturais. Claro que homossexualidade tem uma cultura que ultrapassa o sexo e até o sexual (como David M. Halperin explora extensivamente no seu livro How To Be Gay), mas se a sexualidade é reduzida apenas à cultura estética que a partir dela é construída (principalmente num filme que pretende tratar a experiência universal da homossexualidade), a expressão da mesma acaba por ser pobre.
A melhor cena do filme é o massacre do monstro, pois aproxima-se de uma certa abstração, mas mesmo assim esta é interessante pelas cativantes tendências estéticas do realizador, que existindo só por si em vácuo têm pouco interesse. Só há um grande (e curtíssimo) momento sexual marcante, uma alusão a fisting, mas devido à sua abstração e ao filme em que se insere, parece pouco mais que uma provocação fraca.
Hideous é dolorosamente óbvio, e isso é o pior que se pode dizer de um filme que está a tentar ser tão único.
Vasco Muralha