The Whale, do cineasta Darren Aronofsky, chegou aos cinemas portugueses e trouxe consigo um tópico urgente: o facto de vivermos num mundo carente de empatia. Na cerimónia dos Óscares arrecadou duas merecidas estatuetas, celebrando-se assim o regresso do ator Brendan Fraser, estrela “esquecida” pelo público.
Assim que o filme abre, somos introduzidos à sua personagem principal: Charlie, um professor de um curso online. Apesar de, inicialmente, apenas ouvirmos a sua voz (Charlie esconde-se atrás de uma câmara que mantém desligada), a intensidade dessa mesma voz prepara-nos para um filme que nos irá levar numa viagem emocional desconfortável. Passados uns minutos vemos aquilo que esperávamos ver desde o início: o enorme corpo de Charlie (antecipado já pelo cartaz e trailer do filme). Aquela figura “monstruosa” (o fato de gordura que lhe valeu o Óscar de melhor caracterização) existe não só para “assombrar” e deixar desconfortável o espectador, mas também para trazer para cima da mesa o tema da obesidade mórbida que, à primeira vista, parece ser o tema principal da nova longa-metragem do realizador de clássicos como Requiem for a Dream e Black Swan.
É difícil para o espectador distanciar-se deste corpo e desta obesidade, tendo em conta a forma próxima como a câmara de Matthew Libatique (diretor de fotografia) enquadra a personagem principal – quase sempre em grande plano – e a forma como a montagem sonora dá destaque a certos ruídos que o ator faz enquanto come. Uma das principais críticas feitas ao filme é a de que aquele corpo grotesco apenas serve o propósito de espantar, ou até “entusiasmar” o espectador, de uma forma que pode ser interpretada como populista. Na sala de cinema, vemos que, enquanto Charlie “engole” asas de frango gordurosas, o espectador, que se delicia com um balde de pipocas cobertas de caramelo, ri, sendo pouco claro se se trata de um riso cómico ou nervoso. Considerações à parte, torna-se óbvio que Darren Aronofsky nos queria chocar com estas imagens, ao mesmo tempo que nos remete para a noção extremamente realista das mesmas.
Desta forma, pode inferir-se que o lado performático do corpo acaba por marcar um filme que é, por sua vez, uma adaptação da peça de teatro de Samuel D. Hunter e que, por isso, se vê, primeiramente, apoiado nos seus diálogos. O espetáculo do corpo – um espetáculo visual, que alguns parecem ver como fetichista – caminha de mãos dadas com a palavra, neste que é um filme que não faz por esconder o seu lado teatral. Esta realidade faz com que The Whale acabe por perder, dado respirar tanto a texto dramático. Ainda assim, esta afinidade com o teatro faz-nos pensar que talvez o diálogo expositivo e o cenário único – um apartamento desleixado mas, em suma, um pouco genérico – sejam as únicas duas formas capazes de dar resposta à história de vida de Charlie: uma vida que se passa num mesmo lugar e onde nada acontece e onde só nos resta falar sobre aquilo que já aconteceu.
Porém, The Whale é sobre questões muito mais gerais do que apenas a vida e a obesidade desta personagem. É um filme com várias camadas, que nos fala de orientação sexual, religião, literatura, relações familiares, parentalidade e sentimentos empáticos que nutrimos sobre “o outro” à nossa volta. Na última semana de vida de Charlie, este tenta uma reaproximação com a sua filha adolescente, interpretada pela atriz Sadie Sink, num papel que se mantém muito colado àquilo que faz na série pela qual ficou conhecida: Stranger Things. Ao longo do filme, para além desta interação com a sua filha, Charlie interage com os seus alunos através de uma câmara desligada; com um estafeta de pizzas através de uma porta que mantém fechada; com um pássaro que vem comer à sua janela; com a sua ex-mulher alcoólica; com um jovem que pertence à Igreja New Life e que tenta salvá-lo espiritualmente; e com a sua grande amiga e irmã do seu companheiro morto, Liz. Interpretada por Hong Chau, Liz é a grande companhia de Charlie e é também através dela que vivemos algumas das emoções mais fortes deste filme.
É no olhar de Brendan Fraser que vemos espelhada a necessidade de uma sociedade mais empática. Charlie é um homem que, independentemente da forma como a sua vida tenha corrido, continua a olhar para o mundo à sua volta com um olhar quase inocente, de alguém que vê beleza naquilo que está a presenciar. Há uma felicidade e empatia inerentes a esta personagem que dá ao filme uma pequena mensagem de esperança e que nos faz pensar se terá Darren Aronofsky amolecido ao longo dos tempos. No final de contas, estas personagens todas querem salvar e ser salvas, e é nas ligações entre elas que está a grande magia deste filme. Aronofsky eleva o filme na sua cena final, através de um contraste direto com a câmara desligada no início do mesmo. Finalmente, vemos um Charlie que deixou de se esconder atrás da câmara e atrás de objetos como o andarilho, que o parecia ajudar a movimentar-se pela casa, um Charlie que caminha para a sua filha e que por isso parece ser “absolvido”, numa espécie de libertação religiosa. O branco substitui o preto. A empatia substitui a falta dela.
Inês Moreira
[Foto em destaque: The Whale, de Darren Aronofsky– © A24, Protozoa Pictures ]