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72ª Berlinale (2022) Berlinale Festivais de Cinema

Três Tigres Tristes, um universo surrealmente próximo do nosso

Em São Paulo, num futuro distópico sinistramente semelhante ao nosso, um vírus indeterminado infeta a população, atacando a capacidade mnemónica do cérebro. Para controlar a pandemia, é anunciada uma “Fase Dourada”, cujas condições ainda estão por definir. No meio da confusão quotidiana, três jovens queer navegam as dificuldades do mundo em que vivem, além das suas próprias identidades.

Com uma mistura peculiar de tons nostálgicos, comoventes e bizarros, Três Tigres Tristes explora a sua ideia pandémica de um modo uncanny, em que o reconhecimento do que vemos na tela é, digamos, preocupante. Como rapidamente nos apercebemos, os sintomas deste vírus inventado são, de forma explícita, as consequências do nosso, sobre o domínio do qual é impossível não esquecer. É impossível não perder a perspetiva daquilo que, no fundo, realmente importa e, um a um, somos infetados, afetados. Felizmente, Pedro, Isabella e Jonata relembram-nos, eles que são os mais marginalizados pela sociedade, do valor da comunhão, da amizade e da intimidade.

Assim, no seu estilo caracteristicamente diferente, Gustavo Vinagre apresenta-nos esta história de assuntos sérios com uma vitalidade vibrante, que edifica a tal expressão “rir para não chorar”, não inocentemente proferida na obra. O seu cenário é pincelado com traços cómicos e satíricos pouco ou mais demarcados, meramente em segundo plano ou impossíveis de ignorar. Em nome desta última vontade, o cineasta interage ativamente com tudo o que põe na tela, chegando a trazer, por poucos segundos, objetos à vida, numa estética mágico-realista.

Isabella Pereira, Jonata Vieira, Três Tigres Tristes © Cris Lyra

Uma imagem com pessoa, interior

Descrição gerada automaticamente

Ao longo do percurso deambulatório das personagens, há uma politização intrínseca ao filme, presa até na sua simples existência, por ser produto do último apoio financeiro cultural, antes das mudanças trazidas pelo governo de Bolsonaro. Mas para lá das suas circunstâncias práticas, existe uma clara crítica ao que intitula de “capêtalismo”, segundo o qual o bem-estar de cada um, ou mesmo a definição deste conceito, é altamente influenciado pelas suas condições laborais. Isabella e Pedro não só partilham um pequeno quarto, mas também ambições de estabilidade financeira, que se traduzem nas suas atividades diárias. A primeira quer estudar administração, não por interesse, mas pela promessa de uma carreira segura e lucrativa. O segundo é trabalhador sexual, artista só em part-time

É este tal poder capital que acaba também por ditar a nossa memória coletiva, afetando o domínio sexual, racial e colonialista com a força de um esquecimento compulsório, que Gustavo Vinagre põe à descoberta. Neste sentido, no jogo do domínio dos corpos, o realizador quer libertá-los de todos os constrangimentos do mundo contemporâneo. A certo ponto, corta as amarras sociais, eróticas e até temporais que prendem as suas personagens, numa longa sequência que rompe completamente com a narrativa. É um extravio que atinge proporções talvez demasiado surrealistas, ao distrair-se daquilo que quer dizer para satisfazer uma autoindulgência nascida da partilha do seu efeito bizarro. 

Nilceia Vicente, Três Tigres Tristes © Cris LyraUma imagem com pessoa, comer, exterior, mordidela

Descrição gerada automaticamente

Ainda assim, sucede no alcance do seu clímax orgásmico, já que, após a sua experiência, o retorno a qualquer cena aliada ao comum parece simultaneamente um alívio e insuficiente em comparação. Com isto, Três Tigres Tristes força a rutura do conveniente, para demonstrar que o retorno à normalidade como a conhecíamos é inconcebível, deixando-nos com uma única certeza: “O mundo novo é impossível e é para lá que vamos.” Será que o queríamos de qualquer outra forma?

Margarida Nabais

[Foto em destaque: Isabella Pereira, Pedro Ribeiro, Jonata Vieira, Três Tigres Tristes © Cris Lyra]