Foi curioso perceber, ao longo da conversa com Susana de Sousa Dias e Ansgar Schaefer (realizada via zoom – ela nos Estados Unidos, ele em Lisboa), que a origem de Viagem ao Sol, o documentário incluído na Competição Nacional de longas-metragens do IndieLisboa, baseado em imagens de arquivo de crianças austríacas refugiadas depois da 2ª Guerra Mundial, tem precisamente 30 anos. Justamente na altura em que ambos se conheceram e iniciaram uma mútua colaboração na produtora Kintop. Uma investigação que esteve igualmente relacionada com o projecto de doutoramento de Ansgar, sobre a deslocação de refugiados judeus para Portugal durante a Segunda Guerra Mundial. Isto já depois da tese de mestrado sobre crianças de origem alemã em Portugal durante o mesmo período.
Neste documentário co-assinado por ambos (a primeira vez que tal acontece) aborda-se o papel da memória das crianças austríacas acolhidas no nosso país pela Caritas Portuguesa no pós-guerra (1939-45), capaz de fornecer um estudo desse olhar, ao mesmo tempo que oferece uma visão sobre os padrões culturais e sociais vigentes durante o Estado Novo.
“Nessa altura disseram-me que havia muitas crianças”, precisa Ansgar no início da conversa. “Mas não fazia sentido, porque as crianças judaicas não foram da Alemanha para Portugal. Foram antes para a Inglaterra.” E a razão para esta realidade estava relacionada com a proibição de Salazar em deixar entrar judeus em Portugal. “Depois da guerra é que temos esta situação”, prossegue. “O início da investigação foi mesmo o meu trabalho sobre refugiados judeus que viviam na Alemanha da Segunda Guerra Mundial. Foram várias pessoas que me falaram disso.” Mais tarde, o projecto assumiria uma forma ligeiramente diferente, acabando mesmo por se chamar O Menino Austríaco. No entanto, seria interrompido e retomado depois em 2016.
Deixar vir a mim as criancinhas!
“É Interessante perceber que estas crianças austríacas fazem parte da memória colectiva de Portugal”, explica o produtor da Kintop. “Há inúmeras famílias que têm ou tiveram contacto com crianças austríacas. Existe em Bragança várias aldeias com crianças austríacas”. Ao todo, terão vindo para Portugal 5500 crianças austríacas eram 5500, sendo que apenas algumas centenas alemãs. “Mesmo assim, era muito para uma sociedade. Depois temos as imagens oficiais de crianças a descer do barco que se viam nos jornais de actualidade. Quem ia ao cinema conhecia aquelas imagens.” Fundamental para a pesquisa feita para este projecto foi o contacto do Sr. Ingo Koenig, da embaixada austríaca, que possuía uma base de dados com milhares de nomes de crianças austríacas da Cáritas. “Foi através destas indicações que conseguimos entrar em contacto com as pessoas e fazer as nossas entrevistas”, revela-nos Ansgar.
Por ser turno, Susana de Sousa Dias chama a atenção para o dado interessante de se constatar como “estas crianças austríacas fazem parte da memória colectiva de Portugal”. Sendo mesmo possível hoje em dia a sua localização. “Há inúmeras famílias que têm ou tiveram contato com crianças austríacas. Aldeias em Bragança, com crianças austríacas.”
Naturalmente, toda esta investigação apenas se torna possível com recurso a elementos de arquivo – um método de trabalho seguido ao longo da muito consistente filmografia da investigadora Susana de Sousa Dias – como Natureza Morta (2005), refletindo sobre a opacidade das imagens, ou 48 (2010), recorrendo a fotografias de presos durante a vigência do Estado Novo; ou ainda Luz Obscura (2017), indagando o sentimento de perda por parte de familiares do dirigente comunista Octavio Pato, ou até Fordlandia Malaise (2019), ao confrontar o espaço de memória e a actualidade da cidade industrial criada por Henry Ford na Amazónia em 1928.
Curioso neste filme é perceber com Ansgar quem tem as imagens e quem não as tem. Portanto, quem tem ou não direito à imagem. “Nem todas as crianças têm imagens. Desde logo, aquelas crianças que não tiveram experiências tão boas, como as que tiveram experiências maravilhosas. É sempre a mesma coisa, não é? Quem tem direito à imagem e quem não tem direito à imagem.“ Ao que Susana complementa: “a própria existência de imagem é a prova da forma como foram acolhidos, em que meios é que foram” e numa segunda fase, “a dificuldade em encontrar os materiais que as próprias famílias nos deram, imagens da época onde houvesse uma criança na imagem”. Razão pela qual esta abordagem se revelou completamente nova para ambos. “Porque nunca andámos à procura de crianças. A verdade é que as crianças não existem nas imagens de arquivo. Isso é que é muito interessante. Porque isso também só realizamos na própria investigação, na própria montagem à procura de imagens. As crianças normalmente estão na margem. Essa mudança de paradigma apenas ocorreu ao longo das últimas décadas. Como é que a comunidade olha para a criança?”
As imagens que nos olham
Ora é precisamente esse tratamento da imagem e o que ela nos mostra e releva que procuramos compreender com Susana de Sousa Dias. “O que é importante na imagem é tentar perceber o que é que ela tem lá dentro. E perceber o que ela mostra a superfície. Neste caso, grande parte do material do filme são imagens familiares. É muito interessante olhar para aquelas imagens e perceber o que é que elas mostram e o que elas escondem. E perceber também que é preciso ter em atenção que são fotografias muito codificadas. São imagens de família feitas de acordo com os modos de representação daquela época. E também são sempre tiradas pelo elemento masculino da família. Há uma série de coisas que acontecem naquela imagem, que é preciso perceber que está lá. Bem como a ideia de Portugal que aparece no fundo. Olhando para as imagens conseguimos detetar muito mais do que aparentemente estão a mostrar. “
Seguramente, imagens que nos olha e interpelam. “Sim, há sempre uma interpelação”, confirma a realizadora. “Até porque nestas imagens as pessoas olham para a câmara, portanto estão a olhar para nós. Mas aparece também esta ideia de contra campo. Há um olhar que nos é devolvido. O filme trabalha também esse aspecto. Depois há ainda a importância do som. O som foi muito trabalhado. E a questão do próprio testemunho. “ Ao fim e ao cabo elementos fulcrais sobre o reconhecimento da época.” Susana explica: “Por um lado, temos a questão do olhar da criança. Ou seja, são adultos que falam, mas de repente a criança irrompe no discurso. Nós tentámos seguir o filme por aquela perspetiva. O que é que esta criança viu?” E depois tudo aquilo que nos revela sobre Portugal: “São crianças que vêm, numa situação muito particular, com toda essa experiência de guerra. De repente observam um país que para elas é estranho e revela novas dimensões. Isso suscita toda uma série de questões.
Para o filme, Susana e Ansgar falaram com mais de 50 pessoas, embora tenham sido selecionadas apenas cerca de vinte. “Nós tentamos ir pelas pessoa e pela experiência individual que eles contam”, esclarece Sousa Dias. “Tentamos criar uma voz que pudesse, de certa forma, transmitir aquilo que foi a experiência numa imaginação mais coletiva. Este não é um filme de personagens. Estas pessoas vão contando as suas experiências e vão oferecendo um quadro. Foi esta experiência do que era Portugal da altura.” Por outro lado, a possibilidade de perceber as leituras que esta realidade poderá ter nos dias de hoje. Sobretudo num contexto tão semelhante, com uma guerra a decorrer actualmente na Europa que produziu já um tremendo fluxo de milhões de refugiados. “Exatamente, uma coisa que é muito importante para nós é como é que tudo isto ressoa nos dias hoje. Pois, lá está, temos as meninas loiras de olhos azuis, eram as primeiras a ser escolhidas. As morenas, as mais escuras, ficavam atrás. Claramente temos aí um padrão”, entende Susana.
Interessante é perceber como é que tudo isto chega ao nosso presente. Ou não chega. Até porque o relevo está precisamente na “importância de escavar os factos. E o que foi apagado da História, da memória. Porque há memórias fortes e memórias fracas. E as fracas são as mais interditas, são proibidas.” Até porque as (na altura) crianças não poderiam verbalizar esta experiência”. Por isso, tudo passa pela possibilidade de “dar voz às crianças, mas de forma a que elas – adultas hoje – possam avaliar uma memória infantil, mesmo que sobre uma memória distante”. No fundo, algo que “apela à memória infantil”, como esclarece Ansgar. Susana completa a ideia referindo que “não procurámos os adultos a reflectir sobre experiências do passado. O que tentamos foi perceber como é que essa criança emergia que era conforme nos dava as imagens e as vivências e a experiência. Isto normalmente são narrativas menores, mas aqui são as mais relevantes. Pode revelar-nos algo de novo. “
O poder do som
Uma nota ainda sobre o muito relevante trabalho do som levado a caso pelo estúdio Kintop, responsável também por outros filmes em diferentes secções do IndieLisboa, como Red Africa, de Alexander Markov, Rua dos Anjos, de Renata Ferraz e Maria Roxo. “Para nós, o som é sempre muito importante”, confirma Susana de Sousa Dias. “Basicamente temos aqui três níveis”, completa Ansgar Schaefer. “Temos a imagem, temos a fala e temos o som. Ou seja, nunca temos uma correspondência total das três coisas. Podemos ver que as pessoas dizem, mas ao mesmo tempo ouvir uma música, com violinos. No fundo, cada coisa tem uma via autonóma.” Precisamente o que foi feito com o documentário de imagens de arquivo de Red Africa, em que o som de propaganda soviético foi totalmente retirado e retrabalhado com sons puramente essenciais, conotando a imagem com outras capacidades de leitura suportadas pelo poder da imagem.
No caso de Viagem ao Sol, trata-se sobretudo de analisar uma memória que é parcelar, como reflecte Susana: “As imagens são mediadas por diferentes olhares. Quando são construídas mostram uma determinada realidade. Nós trabalhamos com esses níveis, não para reforçar alguma coisa, mas precisamente para quebrar esses laços e poder criar uma abertura, para que a coisa seja pensada para além daquilo que está a aparecer. Isso para nós é importante. A ideia é quebrar essas associações, essas redundâncias. Para tentar direcionar o espectador naquilo que está a ver. Não induzir uma leitura específica para cada coisa.”
Fundamental é neste plano o trabalho do som composto por Didio Pestana (músico, compositor e sound designer – com trabalho conjunto com o Gonçalo Tocha), desenvolvido com a intervenção de Susana e Ansgar. De resto, um trabalho semelhante ao realizado em Natureza Morta (2005). Ou seja, como explica Susana de Sousa Dias, “não é o compositor que vai fazer o som sobre as imagens, mas dá-nos o som que é montado com as imagens. Isso é muito importante neste processo. O som tem de estar ligado com as imagens e com o que está a ser dito.
Regresso a Forlândia
Entretanto, valerá a pena referir que Susana trabalha já em dois projectos diferentes. Um deles será um complemento a Fordlândia Malaise (2019). Voltou ao Brasil em 2021, à região da Amazónia e à vila Fordlândia, para fazer uma espécie de díptico, em que a segunda parte se vai Fordlandia Panaceia. “Isto para trabalhar uma série de questões que ficaram em aberto”, como nos confessa. “De repente surgiram uma série de uma série de novidades. Interessou-me aprofundar todas as questões envolvidas na criação daquela company town. E sobretudo, pensar o que lá estava antes e o que está atualmente.” O outro decorre em Angola e foi interrompido pela pandemia. “Tivemos agora em fevereiro e março em Angola. Supostamente já devia estar feito. É sobre a Fazenda Tentativa, uma fazenda criada no princípio do século vinte e fim do século dezanove. Foi considerada uma fazenda modelo. Durante a guerra colonial a tropa portuguesa foi sede de um batalhão. É uma história dramática ali. E outra vez, é uma história que se faz por camadas. Através daquela fazenda consegue-se abordar diferentes semanas temporais, históricas, com apagamentos históricos, apagamentos da História, a apagamento da memória também. E vir até a actualidade.”
Susana de Sousa Dias sintetiza desta forma ambos os projectos: “Tanto na Fordlandia como neste projecto, a questão tem a ver como como é que todas estas histórias, todos os estes apagamentos, como é que isso nos permite ainda poder escavar? Para trazer até o presente algo que foi sendo esquecido, foi apagado. E como é que isto pertence ao nosso futuro. É sempre uma questão também do presente . É sempre esta dimensão, ou seja, não é ir ao passado. É ver como é que tudo isto chega ao nosso presente. E como é que se reconstrói no nosso presente.” De certa forma, essa pesquisa do passado para representa o nosso presente poderá constituir o objectivo do cinema de memória de Susana de Sousa Dias e Ansgar Schaefer.
Paulo Portugal
[Foto em destaque: Viagem ao Sol ©Kintop]