Em Dogwatch, o poder desnecessário impõe-se sem reação, ao passo que em Foragers, é a ilegitimidade do poder que se impõe diante uma bagatela. Por fim, na curta Quem de direito ausculta-se o ancestral poder pela posse da terra, mas à beira de ser alagado.
Na sua estreia em formato longo, o grego Gregori Rentis coloca a nu a (des)utilidade da força bélica quando confrontada com a ausência de conflito, na intrigante e inesperada calmaria poética captada em Dogwatch, a co-produção franco-helénica exibida em estreia mundial na secção competitiva do festival Visions du Réel, a decorrer em Nyon, na Suíça. Nesta cobertura online, vimos ainda Foragers e Quem de Direito.
A bordo de uma nave de intervenção marítima, uma task force multinacional de soldados da fortuna entrega-se a tarefas menores num quotidiano de espera. Enquanto uma voz de sotaque israelita vai gritando ‘inimigo às nove horas’ ou ‘mudar de carregador’, os pupilos contentam-se em contemplar alvos imaginários ao mesmo tempo que apertam, com nervosismo, um gatilho sem pressão. Nos intervalos, a câmara procura diferentes coreografias, sejam os movimentos precisos da máquina elétrica que acerta o cabelo, os movimentos atléticos que insuflam os músculos para exibir os bíceps e peitorais depilados numa discoteca masculina em dia de folga ou até ainda os gestos indolentes que cozinham ovos estrelados.
Longe vai a ‘golden era’ em que eram frequentes as investidas de corsários, nessa zona de alto risco na costa da Somália, e motivaram até a ficção made in Hollywood, em 2013, com Tom Hanks no papel de Capitão Philips, de Paul Greengrass. Hoje o perigo parece surgir apenas de pequenas embarcações carregadas de explosivos com o único intuito de provocar o caos. Outros tempos, que motivam veteranos, como Victor, a meter os papéis para um desk job.
É precisamente esse lado observacional, de completa modorra, que melhor acentua o lado absurdo da guerra. Algo que Rentis regista com rigor, sublinhando a dimensão observacional dos rituais de entrega e observação de um corpo de combate, embora resignado à espera do inimigo com falta de comparência, a fazer lembrar o cinema do canadiano Denis Coté, em particular, o Ta peau se lisse, de 2017.
Cercados
Embora sem qualquer desejo de simular uma ponte temática, sente-se em Foragers (no original Al-Yad Al-Khadra), da artista palestina Jumana Manna, a viver em Berlim, uma sensação inversa a esse projecto, ou seja, a proibição imposta pelas autoridades israelitas da apanha ancestral de determinadas ervas silvestres pelos palestinos, chamadas Za’tar e Akoub. Afinal trata-se apenas de plantas medicinais que abundam nos territórios ocupados e nos Montes Golan, constituindo parte integrante da dieta local e ancestral da comunidade árabe. No fundo, vitais pelos seus poderes medicinais, anti-inflamatório e bactericida e outras propriedades farmacêuticas. Quase um orgulho nacional, como nos é relatado no filme.
A partir do momento em que uma autoridade israelita determinou a proibição da apanha de akoub, em 2005, gerou-se uma enorme procura da população palestina, pela oferta de um reduzido número de empresas israelitas que asseguram, em kibutzes, a sua produção. Algo que se torna muito dispendioso aos agricultores árabes, pela impossibilidade de garantir um seguro para as culturas.
Na sequência da demarcação e vedação desse território, criando assim um comércio exclusivo, gera uma colecta ilegal por parte de muitos árabes que recusam essa imposição. Só que a recolha ilegal faz desta erva um equivalente ao tráfico de marijuana e gera contraordenações pesadas.
A certa altura, um velho argumenta “não vou justificar a vossa lei” à instrutora israelita que invoca o preceito criado pelo seu povo, argumentando que o proíbe de “colher alimento”. É precisamente diante desse direito de resistência, melhor, de indignação, com que ficamos.
Por fim, vimos ainda, na secção Film Market, a curta brasileira Quem de direito, a invocar a permanente luta pela posse da terra. Um registo que colhe interesse, sobretudo pela forma como a cineasta Ana Galiza recria histórias, passadas, mas também presentes.
A partir de registos fotográficos, que nos recorda a obra da portuguesa Susana Sousa Dias, evocam-se a História desse conflito na bacia do vale Guapiaçu, a 100 kms do Rio de Janeiro. E dos conflitos gerados desde o início dos anos 60 e prolongados ao longo de toda a ditadura militar, justamente no município com mais presos e mortos durante esses anos de chumbo. No meio desta questão, está ainda a polémica construção de uma barragem que não parece ter em conta o impacto nas populações que ficariam totalmente submersas.
[Foto em destaque: Foragers ©Visions du Réel]