O mais recente filme de Marion Naccache estreou em Portugal no dia 29 de Abril na competição Silvestre do Indielisboa.
Ao volante deste road movie, cujo aroma alegórico se manifesta em notas de Nadja (Breton) e de Ulysses (Joyce), deambulamos na primeira pessoa, perdidos numa estrada de Nova Iorque. O filme é construído sobre uma conversa, sem pressas, um plano sequência e um intermitente périplo noturno, iluminado por letreiros como os de Nighthawks (Hopper) e por luzes vermelhas e verdes de um trânsito que parece ter sido atingido pelo cupido.
A viagem adquire um sentido duplo, contrário ao da estrada, à medida que Tom Jarmusch, em conversa com a realizadora, reconstrói, através da memória, pequenos contos reais, de génese Beatnik, oriundo do mesmo jardim de Robert Frank, da poesia de Allen Ginsberg ou de Patti Smith. Filmes que correram mal por terem tudo para tal, problemas técnicos e outros que cambaleiam para qualquer lado menos para a resolução, orçamentos sempre ausentes ou escassos, peixes mortos, lugares estranhos e traficantes de esquina com muito serviço, surgem numa constelação rica e intrigante.
Years ago, I was working on a movie… é uma história dupla sobre a relação com a câmara, que vai e vem, e nesse fluxo transporta e combina histórias do panorama do cinema independente dos anos noventa em Nova Iorque, vividas por Tom, e uma autocitação sobre a realização do próprio filme que vemos, feito entre o ano de 2004 e o ano passado. Não chegamos a perceber bem para onde dirigem, mas ficamos a par de um arquivo geográfico de antigos lotes e lojas de conveniência que desapareceram ou existem agora noutro local, juntamente com as personagens que surgem a propósito desses espaços. Almas errantes, tão nítidas no cinema de Jim Jarmusch, irmão de Tom. Tudo isto se escuta à medida que a noite cerra e o carro avança incerto no plano com um bokeh em forma de corações, que poderá ser uma escolha estética ou a representação de pequenos desejos ou talvez de uma visão ébria da estrada.
Marion Naccache aborda o cinema na ligação direta com o fazer, from hand to sight (no sentido que poderá ser atribuído às esculturas From Hand to Mouth de Bruce Nauman) relacionando-se com a câmara, tanto pelo que está a ser feito como por o que está a ser dito. Não é isso, antes de tudo, o cinema?
Sebastião Casanova