Mariana Bastos estreia-se a solo na realização com Raquel 1:1, depois da sua primeira longa-metragem em correalização com Esmir Filho. Esta longa-metragem sobre os perigos da religiosidade fanática evoca filmes como Carrie, Saint Maud, Midsommar e The Witch, todos eles apresentando uma mulher como protagonista, submetendo já para um motivo qualquer da luta feminista. A princípio, o filme parece-nos nada mais do que um drama coming-of-age, mas a este a realizadora brasileira vai acrescentando elementos sobrenaturais e de body horror, que o fazem encaixar muito bem na secção Serviço de Quarto deste ano do MOTELX.
Depois da morte da sua mãe Vera, Raquel e o pai decidem mudar-se para a terra natal do mesmo, em Monte Megido. Num novo lar e com a vontade natural de qualquer adolescente de se adaptar, Raquel procura fazer novas amizades e junta-se a um grupo de adolescentes da igreja local evangélica, ainda que contra a vontade do seu pai agnóstico. Contudo, ao familiarizar-se com a palavra de Deus, Raquel começa a questionar a forma como esta põe em causa o valor da mulher. Quando constata tal facto para o resto do grupo, Raquel é silenciada por Ana Helena, líder do mesmo, uma figura opressora que acredita apenas nos dogmas da sua igreja. Mais tarde, Raquel percebe que não está sozinha no seu questionamento à palavra divina e serve quase como “messias” para as outras adolescentes do grupo.
Um Brasil rural é o cenário para este filme que explora muito bem esta ruralidade, trazendo ao de cima os tradicionalismos das mentalidades. Raquel é uma força que vem pôr em causa este pensamento tradicional e tal ação é impugnada violentamente pelos habitantes de Monte Megido, os quais perseguem Raquel e o seu pai, invadindo a sua casa e o pequeno negócio desta família, uma mercearia.
Apesar do acting do filme deixar um pouco a desejar e das suas temáticas ligadas ao terror não serem muito exploradas, aparecendo como pequenos apontamentos aqui e ali apenas para efeito de choque do espectador, Raquel 1:1 é um filme com a força militante de outros filmes brasileiros recentes como, por exemplo, Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Há uma mensagem muito urgente a passar: a misoginia ligada à religião não é coisa do passado, esta prevalece. A necessidade que Raquel sentiu parece-nos ser uma necessidade partilhada com o espectador, a da atualização da religião e das crenças. Como é possível em pleno século XXI ainda serem seguidas regras e ideais escritas num livro há mais de vinte séculos atrás, apenas por homens?
É muito fácil, não olhando para os pormenores sobrenaturais e sangrentos do filme, perceber de onde vem o terror que o coloca nesta categoria. Não há nada mais aterrorizador do que ver um mundo desenvolvido debruçado numa misoginia que parece não ter fim. A crueldade com a qual se olha a mulher e o seu papel na história, mesmo pelas próprias mulheres (noto que Ana Helena e a sua mãe são a força contrária a Raquel neste filme, sendo elas também duas mulheres), provoca medo, dor e tensão, sem necessitarmos de elementos gore adicionais. Raquel 1:1 é um murro no estômago para os espectadores, e é quase desesperante a sensação com que ficamos, e com que fica também Raquel, desta quase impossibilidade de mostrar a estas pessoas o quão os seus ideais são baseados em injustiça e discriminação profunda.
O filme fecha com chave de ouro numa alegoria à pintura do Renascimento, também ele tempo de mudança e de progresso, ambos tão necessários também no nosso tempo. Raquel posa de forma quase estática com uma túnica amarela em frente a um cenário a imitar um céu azul cheio de nuvens brancas. Enquanto este plano, o visualmente mais interessante do filme, acontece, ouvimos uma enumeração de nomes de mulheres, vítimas mortais da opressão masculina, e parece haver uma espécie de libertação destas vítimas. Como se Raquel tivesse tornado agora pública a história destas mulheres e de certa forma as tivesse libertado, e a si mesma, dos seus demónios.
Inês Moreira
[Foto em destaque: Raquel 1:1, de Mariana Bastos – © Claraluz Filmes]