Comecemos pela referência bíblica: “Antes não havia nada, depois fiat lux.” Do vácuo e da escuridão nasceram a matéria e a luz. Esta frase é determinante para nos ajudar a olhar Objectos de Luz, filme de Acácio de Almeida e Marie Carré, obra escolhida para a sessão de encerramento do 20º DOCLISBOA. Para além de uma bonita homenagem à arte da luz, assim como ao caso específico do cinema português, fica o registo de uma meditação fulgurosa sobre a importância da luz enquanto criadora da matéria cinematográfica.
Acácio de Almeida participou como director de fotografia em dezenas de filmes de realizadores como António Reis e Margarida Cordeiro, João Botelho, João César Monteiro, Manoel de Oliveira, Margarida Gil, Paulo Rocha ou Teresa Villaverde, entre muitos outros, que são revisitados neste inusitado ensaio visual. O seu amor pelo desenho da luz e a sua inscrição em imagens levou Acácio e Marie a prestarem toda a atenção e pensamento àquilo que faz existir não só o cinema, mas toda a vida. Partindo dos diálogos que Marie ia guardando dos almoços entre os dois, é a voz de Acácio, o “Homem da Luz” (como aparece creditado no genérico final), que nos guia ao longo de uma série de imagens em que a luz é a protagonista e o centro em torno do qual gravita o pensamento deste filme.
Entre as memórias invocadas e o conhecimento que foram reunindo no trabalho e na vida em conjunto, Acácio de Almeida e Marie Carré viajam no mundo da luz e das sombras, naquela que ambiciona ser uma viagem universal pelo cinema, mas também uma imponente reflexão sobre a existência das coisas. Disperso na sua forma, trabalhando com vários registos, do arquivo do cinema português a novas imagens produzidas para este filme, a obra entusiasma pelo foco que incide no acto cinematográfico, no acto de fazer cinema e tudo o que rodeia a arte de criar imagens. A dada altura, o narrador constata que, não só precisamos da luz para as criar, como para dar vida a uma bobine que contém o universo de um filme. Numa das sequências vemos uma personagem, interpretada por Manuel Mozos, a correr atrás de uma bobine que ganha vida e foge. O objectivo é claro: pará-la e perceber o que ela contém. Até que a vemos a ser projectada – iluminada e dada a ver.
Com pouco mais de uma hora de duração, este jogo de luzes vai mostrando os rostos que foram iluminados por Acácio de Almeida ao longo da sua vasta carreira no cinema. Rostos de actores como Isabel Ruth, a própria Marie Carré ou Luís Miguel Cintra, que numa das cenas mais impactantes do filme confronta-se com o seu rosto reanimado 50 anos depois do filme de João César Monteiro Quem Espera por Sapatos de Defunto Morre Descalço (1971).
Ao longo do filme são várias as perguntas que o narrador vai fazendo sobre a luz ou directamente a ela, “O que somos nós em relação à luz?” ou “que seria de ti sem nós?”, lembrando as palavras dirigidas ao sol em Assim Falava Zaratustra: “Ó grande astro! Que seria da tua alegria se te faltassem aqueles a quem iluminas?”. Objectos de Luz é a estreia luminosa de Acácio de Almeida e Marie Carré na realização e, mais que filme-testamento, é um filme que se alavanca nas memórias para lançar ao futuro a vontade que continuam a ter de fazer cinema.
Ricardo Fangueiro
[Objectos de Luz, Acácio de Almeida, Marie Carré © Doclisboa]