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73ª Berlinale (2023) Berlinale Cinema Português Entrevistas

Susana Nobre: “Não tenho uma visão determinada, ideologicamente, mas terei tendência a fazer filmes com finais felizes.”

O tiquetaquear dos relógios relembram a passagem irrevogável do tempo, a memória daquilo que não volta mais, mas também a muito humana capacidade de reinventar a vida. Susana Nobre projeta essa capacidade através de Helena (Raquel Castro), autêntico espelho com quem esbate as fronteiras da realidade, da ficção e da memória pessoal e coletiva, não obstante Cidade Rabat (presente na secção Fórum da Berlinale) ser a sua primeira ficção apoiada num argumento escrito.

A autora dos recentes No Táxi de Jack (2021) e Tempo Comum (2018), títulos que também observam aqueles que tomam as rédeas do seu destino, propõe, desta vez, uma viagem conduzida pela interioridade de Helena, mulher que se vê forçada a lidar com as particularidades do luto da mãe. A realizadora filma com calma, ternura e generosidade, escapando, também na direção dos seus modelos, a qualquer sentimentalismo ou condescendência televisiva.

Como Susana Nobre, também Helena trabalha em cinema, cuidando de relações intercedidas por horários, dinheiro e outras ficções, motivando assim a observação sobre várias redes de relações de pessoas. Pelas aparições que se sucedem, não será descabido vermos Cidade Rabat também como uma carta de amor às pessoas e princípios da Terratreme, produtora de que Susana Nobre é uma das fundadoras.

A certa altura, quando Helena faz serviço comunitário no Clube Desportivo da Reboleira e Damaia, vários espelhos se refletem ao infinito – Helena, que víramos inicialmente a organizar figurantes para uma rodagem, aponta a câmara de filmar para a sua própria imagem, como que se redescobrindo protagonista, alguém que decide a vida que acontece a cada instante.

No rescaldo do visionamento de Cidade Rabat, seguiu-se uma entrevista a Susana Nobre conduzida pelos autores do Cineblog Kenia Pollheim, Flávio Gonçalves e Ricardo Fangueiro:

Ricardo Fangueiro: Cidade Rabat parece ser construído em torno da ideia de família e comunidade. Percebemos que é filmado com muitas pessoas que trabalham na produtora Terratreme, muitas caras conhecidas. Havia essa vontade de se focar na importância dos vários coletivos e comunidades onde nos inserimos?

Susana Nobre

Susana Nobre: Não, como intenção, penso que não. O filme tem alguns aspectos autobiográficos e em relação ao projeto, a escrita é focada em alguns aspectos da minha vida, que surgiu principalmente como ponto de partida, uma janela para a escrita do projeto. A sequência inicial da descrição do prédio existiu quase como uma espécie de filme autónomo que eu já queria ter feito, uma curta-metragem, uma memória descritiva do prédio da minha infância. Era exatamente capaz de me lembrar de cada pessoa que lá vivia, sabia descrever a casa delas, os nomes… Queria fazer esse exercício como filme.

Depois, também já tinha filmado algumas coisas no Clube Desportivo, mesmo ao lado do bairro da Reboleira, onde o Basil da Cunha costuma fazer os filmes dele, e onde eu também estive, efetivamente, a fazer trabalho comunitário. Eram coisas que eu já tinha até explorado com a câmara, tanto o prédio como a Reboleira. São coisas que eu depois acrescentei à história principal – da morte da mãe – e centravam na ideia do ritual da morte, da partida, a partir da minha experiência. [Juntei] estas coisas de uma maneira um pouco imprevisível, sem saber muito bem onde é que me iam levar em termos de narrativa e de correspondência entre as coisas. Acho que [a comunidade e o coletivo] estão lá, mas não através de intenções completamente dirigidas, nem controladas.

Kenia Pollheim: A Susana falou de um trabalho autónomo sobre as portas e histórias, e é assim que começa este filme. Achei interessante vermos as memórias da personagem principal com as portas e o rasgo dessa memória no papel da mãe. Pode falar-nos um pouco desse acto, do rasgo físico da memória? Parece-nos que as lembranças não têm o mesmo valor para a mãe e para a filha…

SN: Não sinto que os movimentos no filme estejam tão sublinhados, mas existe de facto esse movimento contraditório entre a mãe que quer apagar o rastro dela, e a Helena, que tenta resgatar alguma coisa da sua própria vida. Penso que a personagem projeta-se já na vida da mãe, num lugar que sabe que em breve ocupará. Não são conceitos que tenha trabalhado de uma maneira muito direta mas que existem, de facto, no filme.

Flávio Gonçalves: A personagem trabalha em cinema como produtora, cuida dos horários e vê-se uma ligação com os relógios que vão aparecendo no filme: o tempo, a morte… Quando aparece o trabalho comunitário no Clube Desportivo, há uma ligação da montagem do ponto de vista da realização com a personagem, até chegarmos ao momento em que a personagem se filma ao espelho. Acha que a Helena é uma personagem que se esquece de si própria, demasiado atenta em organizar a vida dos outros, mas que se vai esquecendo?

SN: Sim, penso que esta personagem, quando a encontramos, é uma pessoa que aparece sempre em reação às coisas, a resolver problemas numa certa cadeia produtiva do quotidiano. Penso que, quando aceita o trabalho comunitário, existe esse desejo de fazer qualquer coisa que está fora dessa cadeia [e acho que é isso] que a leva a aceitar, ainda de uma forma um pouco incerta, o trabalho comunitário, para ter esse espaço de atenção. Ela esteve naquele bairro a trabalhar como produtora, com relações muito mediadas pelo dinheiro, e o bairro aparecia como décor. Depois volta com um outro olhar sobre aquela comunidade. Isso também era uma coisa que eu queria ter destacado no filme.

Em relação aos relógios, isso sim foi uma coisa muito de argumento. A ideia de que, quando entramos em casa da mãe, estamos sempre a ouvir o relógio, o tempo, cada minuto é importante. Assim, quando chegamos ao fim do filme, o tempo parou, o relógio está tombado. Já são coisas que têm mesmo a ver com a estrutura do filme.

KN: Essa questão de que a vida continua… No Tempo Comum (2018), há o nascimento de uma criança e nós vemos os passos da reinserção dos novos pais na vida social, numa pequena casa em Lisboa, com os amigos e família… Não sei se é propositada ou não, mas há a contraposição do nascimento desse filme com a morte em Cidade Rabat, mas principalmente a ideia de que há muito mais para além do que nos acontece. A vida continua e as coisas vão-se desenvolvendo sem o nosso controlo e isso é enfrentado neste filme de uma maneira muito contida. Vemos a Helena muito tensa, mas sem muita preocupação com o que vai fazendo. As coisas parecem até um pouco [desajeitadas] quando finalmente explodem como na cena da dança ou nos momentos informais com a sua equipa de produção.

Cidade Rabat, de Susana Nobre © Paulo Menezes

SN: É a ideia desta mulher que esteve num ambiente de doença, de morte, que teve uma necessidade enorme de viver outras experiências, e é isso que a leva a ter uma série de impulsos que a põem numa espécie de euforia, de querer viver a alegria do mundo. Ela quer sair daquele universo mórbido. Quer, de certa maneira, acreditar na vida. A ideia de alguém que viu a morte de perto e que precisa de voltar a acreditar. Acho que ela tem essa euforia e, por um lado, acho que há uma ligeira evolução na sua vida e, quando chegamos ao final do filme, não é que tenha havido uma grande evolução, mas sabemos que ela talvez esteja já preparada para viver qualquer coisa de novo, mesmo que não saibamos o quê.

FG: Talvez através do cinema?

SN: Não sei… Ela faz cinema, mas podia fazer outra coisa… Podia escrever, por exemplo. É mais essa ideia de fazer qualquer coisa que tenha a ver com uma vida mais contemplativa.

KN: Isso nota-se já no trabalho com a comunidade no ato de filmar o Clube Desportivo em si.

FG: E há, no filme, uma visão do mundo acolhedora. Não há grande hostilidade entre as pessoas. Talvez esse acreditar na vida possa vir através dos outros, no dar atenção aos outros como já acontecia com a mãe? Os modelos que usou também fazem parte da vida da realizadora, está tudo muito unido, certo?

SN: Sim, há uma composição. É um filme de ficção, é tudo sempre ficcional, mas as coisas partem de experiências da vida que são, depois, muito elaboradas.

FG: E faz-lhe sentido isso de ser acolhedor? Quando se faz um filme, está a criar-se uma certa visão do mundo, um ideal. Neste filme só me lembro de um momento em que se sente uma falta de segurança, um mundo não tão ideal… Ou isto é simplesmente uma coincidência das pessoas que a rodeiam?

SN: Não tenho uma visão muito determinada, ideologicamente, no filme. Não estou a defender nada, estou a juntar as peças e ver o que comunicam entre si. Terei uma tendência, talvez, em fazer filmes com final feliz, apesar de atravessarem depois coisas muito duras. Mas isso talvez já venha da minha personalidade.

FG: Quando se olha ao espelho, há uma certa calma. O filme pode ser intranquilo, mas revela um modo de estar no mundo… Essa ideia de se esquecer de si mesma também estava presente no argumento, na ideia para a personagem?

SN: Sim, acho que há um apontamento auto-reflexivo, mas podem fazer vocês a psicanálise. [Risos]

RF: O filme marca o ritmo do quotidiano, como foi esse trabalho na montagem? A Susana esteve muito presente, foi importante para intensificar esse ritmo?

SN: Estive muito presente. Foi uma montagem bastante feliz. [Cidade Rabat] foi um filme de argumento, montámos a partir do argumento. Não houve um arranjo em termos de ritmo para dar nuances diferentes. Foi mais um trabalho de economia, retirar o que pudesse interromper o filme, foi mais essa a orientação.

KN: Quanto ao trabalho da Raquel Castro, a relação que se criou entre realizadora e atriz e a forma como ela encarna esta personagem, de uma pessoa que está numa espécie de pausa na vida, é bastante intensa. Há também uma contraposição com os outros filmes, sendo o primeiro com argumento escrito, era algo de que sentia falta?

SN: Foi muito interessante, eu não vi mais ninguém. Foi um casting único, foi o André Silva Santos, assistente de realização do filme, que me sugeriu a Raquel depois de ter visto um vídeo com ela e eu achei que sim. O André já conhecia o argumento e achou que a Raquel seria interessante. Encontrámo-nos, conversámos, e havia algumas coisas da sua história de vida que me deram alguma garantia que havia um background bom para se trabalhar a personagem. O facto de ter sido enfermeira, de ser mãe… A partir daí tive uma confiança de que conseguiríamos fazer o trabalho juntas e avançarmos. Fiquei bastante satisfeita, acho complicado lançar expectativas com atores naqueles castings enormes, que são importantes, mas foi bom não ter de entrar nesse domínio. Fui muito feliz porque fez mais sentido assim, e fortaleceu a confiança da Raquel no trabalho.

O processo da Raquel com a personagem foi bastante vivo, não houve uma receita imediata do argumento que se impôs desde o início para ser executada na rodagem. Estava sempre qualquer coisa a funcionar, ela ia fazendo as suas tentativas. Nós rodámos dois meses, e a partir do meio da rodagem ela estava já quase completamente autónoma.

FG: E já está a ser pensado um próximo filme…?

SN: Sim, já há uma ideia. Gostava muito de continuar do trabalho com a Raquel, ainda neste trilho da vida de uma mulher…

Flávio Gonçalves, Kenia Pollheim Nunes e Ricardo Fangueiro

[Foto em destaque: Cidade Rabat, de Susana Nobre © Paulo Menezes]

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