“No Angels – Mae West, Rosalind Russell & Carol Lombard”
As grandes damas da screwball comedy
Elas combinam ao mesmo tempo, e como ninguém, o apelo sexual, o timing da oralidade e a verve da screwball comedia (comédia de costumes), mas também, ou sobretudo, o empoderamento feminino. Mae West, Carole Lombard e Rosalind Russell reúnem tudo isso e muito mais num conjunto selecionado (e restaurados em 4K) para a secção Retrospectiva da Berlinale 2022. Sim, elas não são anjinhos!
Esteve programada para o ano passado, mas acabou por transitar para 2022, devido à pandemia. São, ao todo, 27 filmes que nos fornecem três variantes muito fortes da comédia no feminino e da sua capacidade de sedução, cobrindo todo o período deste sub-género da comédia – em particular entre 1932 e 1943. Isto quando a pujante indústria de cinema americana se galvanizava para encarar com garra a década de 30, captando o arrojo narrativo de uma nova sociedade que procurava, a todo o custo, superar o trauma da Grande Depressão. Sobretudo depois da passagem para o sonoro. Era um cinema espevitado, delirante e picante que acabou por criar o selo da época de ouro de Hollywood.
Só que tão picante foi que acordou o lado mais conservador da sociedade puritana, concretizando-se nos ditames do código Hays – que entraria em vigor em 1934 (e julgamos que, em grande parte, devido à inflamação provocada por Mae West, mas não só) e só seria abolido em 1968. Aí se retiravam as palavras mais duras, a nudez, mesmo sugerida, várias formas de violência e, claro, toda a sugestão sexual.
“A ideia de focar a Retrospectiva em três mulheres diferentes foi para acentuar o valor acrescentado que estes ‘anjos’ trouxeram para Hollywood”, refere no seu blog Carlo Chatrian, o director artístico da Berlinale. “West, Russell e Lombard eram mais do que simples criaturas celestiais. Eram rápidas e cheias de espírito, lutaram pelo seu lugar no cinema, acrescentaram espessura e ironia às suas personagens, e tornaram possível encarar o ser feminino de uma outra forma.” Sejam as loiras West e Lombard ou a morena Russell, a verdade é que cada uma soube à sua maneira impor na indústria uma presença muito mais igualitária na eterna guerra dos sexos, bem como na luta contra a censura.
Talvez Mae West até ocupe neste trio um lugar especial. Ela que vinha do vaudeville e já tinha criado, criou um template próprio de empoderamento feminino, conjugado de suprema sedução e entrega musical. Além da invulgar particularidade de miss West assinar todos os seus diálogos. Que o diga a vedeta Cary Grant que deve a Mae West a sua descoberta como grande actor, pois foi ela que o descobriu e impôs para contracenar com ela em She Done Him Wrong (1933), de Lowell Sherman. E daí saiu uma das mais famosas frases dos anos 30: “Why don’t you come up and see me, sometime?”. Também em Night after Night (1932), de Archie Mayo, prolongou, e de que maneira, esse período em que os speakeasies se converteram nos locais da diversão americana, onde o álcool abundava, mesmo em tempos de Lei Seca.
O mesmo se diga da loira Carole Lombard – cuja carreira debutou, ainda adolescente, sob a direção de Allan Dwan (uma retrospectiva que a Cinemateca Portuguesa acompanha desde dezembro), assinando o seu primeiro contrato aos 16 anos. Ou seja, cresceu dentro da indústria, ao contrário de Rosalind Russell e Mae West. Só que a sua vida também seria também curta de mais – tal como o seu casamento com Clark Gable -, pois viria a falecer muito jovem, aos 33 anos, num desastre de avião. De Carole Lombard veremos filmes incontornáveis como Mr, and Mrs. Smith (1941), de Alfred Hitchcock, Nothing Sacred (1937), de William Wellman, To Be Or Not to Be (1942), de Ernst Lubitsch. Ou a forma como miss Rosalind Russell espelha essa nova mulher. Seja pela forma como usa o guarda-roupa, da forma mais feminina, como em The Women, de George Cukor (1939), ou se exprime em contexto de oralidade, como no alucinante His Girl Friday (1940), de Howard Hawks, no que mais parece ser um desafio com Cary Grant a ver quem consegue falar mais rápido! Seguramente, um dos papéis femininos mais delirante desse período.
Sim, a Berlinale vai ser seduzida por estes ‘anjos’.
Paulo Portugal
Filmes a não perder:
Mae West: Belle of the Nineties, I’m No Angel, Klondike Annie, She Done Him Wrong
Carole Lombard: Mr. and Mrs, Smith, My Man Godfrey, Nothing Sacred, To Be or Not to Be
Rosalind Russell: His Girl Friday, Take a Letter Darling, What a Woman, The Women