Um conto de ficção científica alucinado ou o retrato fiel de uma esfera queer lisboeta, caracterizada por um desejo de emancipação e apreço aos apetites corporais. Uma viagem, poderíamos dizer, INTRA-galáctica, pelos planetas do nosso inconsciente, pois os sonhos, visões e delírios, formam o núcleo da narrativa. À primeira vista, parece que Entre a Luz e o Nada, de Joana de Sousa, vem na sequência de uma nova vaga do cinema português, que traz consigo muita cor, adereços e décors excêntricos, drogas e raves. Isto, à semelhança de dois dos vários exemplos dessa corrente: Verão Danado (2017) ou Frágil (2022).
As primeiras imagens do filme pertencem à curta-metragem Universe (1976), de Lester Novros, que relata os mistérios espaciais pela célebre voz de William Shatner, e que serve de prólogo para o foco num grupo de jovens que se prepara para uma rave num edifício abandonado. A dada altura, o narrador pergunta: “Is space travel to these planets possible?”. O filme parece dar a sua resposta. Como é dito pelo mesmo narrador, tudo à nossa volta é feito de poeira de estrelas muito distantes, reforçando a ideia do lugar dos seres humanos no imenso cosmos e a nossa pertença ao mesmo. Além dessa pertença, há uma intenção de criar um olhar alienígena sobre estas pessoas e em particular sobre Shade, a protagonista que sofre de insónias devido a umas luzes que aparecem no céu.
Depois de sermos apresentados a este espaço, Entre a Luz e o Nada é um devaneio colorido de pessoas assombradas por visitas siderais. O filme acaba por ser uma caderneta de símbolos, como se pode perceber pela sinopse: “Cosmos, golfinhos, techno e solidão. Borboletas, amor e raves. Fechamos os olhos, e atravessamos todo o universo numa única noite.” Tal delírio pertence às fantasias comuns de uma geração, que serve de dispositivo para a criação do universo do filme. Também daí vem a frescura de Entre a Luz e o Nada, cheio de fórmulas onde se encontram latentes as capacidades de, quem sabe, trazer algo de mais interessante do que este resultado, no futuro. Fica o prenúncio: quando seres de outros planetas nos visitarem, encontrar-nos-ão num edifício em ruínas a dançar ao som de techno.
Note-se que este é um registo muito diferente do seu anterior Bétail (2014) e que pode significar um desvio curioso na obra da realizadora. Entre a Luz e o Nada revela-se inspirado pelos mistérios de visitas alienígenas ao nosso planeta, de memórias de infância ou sonhos lúcidos, projetando-se num cruzamento estético dos anos 80 e 90. É uma procura por novos corpos, novos animais, novas formas de ser, e que deixa subjacente uma questão curiosa: porque procuramos vida noutros planetas se continuamos a encobrir tantas vidas neste?
Ricardo Fangueiro