É no cruzamento de matérias primas, de suportes analógicos e digitais e na dilatação dos seus limites que se descobre o trabalho de Pedro Maia, realizador português a residir em Berlim há vários anos. O confronto dos materiais, a desfiguração, destruição ou diluição do figurativo e da própria materialidade das imagens, com vista à reificação da abstração, remete para uma ideia de pintura em movimento trabalhada sobretudo em película de 16mm e 8mm. Desde as primeiras experiências em Super 8, passando por um filme criado a partir de “restos” de planos do filme A Zona (2008), de Sandro Aguilar (onde trabalhou como segundo assistente de realização), até à multidisciplinariedade que cruza live cinema, música, livros e instalações, chegamos ao ponto em que já não há (ou nunca houve) imagem real. É o caso de March of Time, que estreou na competição experimental do Curtas Vila do Conde 2023.
O realizador afirma que o filme nasceu do “interesse de explorar a inteligência artificial (AI), porque o que tenho visto é muito mau e muito piroso. Então foi pensar em utilizar isso para voltar atrás. Pegar nesta ideia de regressão da tecnologia, do futuro a olhar para o passado e a recriá-lo. Lembrei-me de pôr a AI a criar imagens destruídas de 16mm. Produzi um algoritmo que concebia uma espécie de terceiro analógico. Portanto, é a inteligência artificial a tentar criar imagens que ela entende serem imagens de 16mm destruídas.”
Partindo de uma reflexão sobre o tempo e a sua influência nos suportes fílmicos, a ideia passou por usar mecanismos de machine learning (um processo tecnológico que permite aos computadores adquirir e desenvolver conhecimento sobre determinado assunto automaticamente) de forma a criar imagens degradadas de 16mm.
Se o conceito nos deixa curiosos, o resultado não é menos interessante. O que vemos é uma sugestão estética daquilo que seria película destruída/desfigurada do ponto de vista da máquina. Nunca saberemos que imagens reais aquela desfiguração esconde, levando a nossa mente a viajar por este filme-fantasma, pleno de cores, formas e texturas, divididas em “capítulos”, de onde a narrativa não está completamente ausente. Há vontade de criar uma estrutura, um desenvolvimento, um ténue fio condutor que, por muito minimal que seja, nos guie pela aventura imagética. Sem deslumbres, – porque há sempre o contacto com a pobreza inerente àquilo que a inteligência artificial é capaz de produzir – o realizador utiliza aquilo que é mais uma ferramenta ao seu serviço, não esquecendo as suas limitações. Neste caso, o trabalho é também a procura das imagens certas. É preciso treinar o computador, domesticá-lo, conduzi-lo através de um caminho atestado de informações e fazê-lo “pensar”, “ensinar-se”.
À semelhança de alguns projectos como How to Become Nothing (2017) ou Janela do Inferno (2022), onde tem sido feita a articulação entre objectos fílmicos mais tradicionais de montagem fixa e formatos ao vivo, com March of Time acontecerá o mesmo: “Agora estou em conversas com alguns sítios para passar isto para 16mm e mostrar como instalação. Com o Pedro Vian, que fez a banda sonora, estamos a desenvolver um concerto com base nisto. O filme foi comissariado pelo 25AV que financiava uma peça audiovisual a um duo que concorresse. Agora, quatro desses projectos vão ser selecionados para a vertente ao vivo. Nós ainda não sabemos se vamos ser selecionados, mas já estamos a avançar com o projecto.”
Esse desejo por cruzar diferentes disciplinas artísticas é expresso pelo realizador, que dá o exemplo de vários dos seus outros trabalhos: “Cada vez mais tenho essa necessidade de que o projecto não seja só uma coisa. Especialmente por causa dessa necessidade de deixar um ou vários registos. Por exemplo, a partir do How to Become Nothing fizemos o Fade Into Nothing, porque o Indielisboa estava interessado em mostrar isto em competição. Agora, quando olho para o filme, fico arrependido, porque é muito menos radical. Fizemos uma versão mais contida, menos confusa, onde a montagem é muito mais simples. Ao vivo há muitas coisas que acontecem. Agora arrependo-me de não ter transposto essa radicalidade do live cinema, que para mim foi a melhor forma de mostrar o projecto”.
Também Janela do Inferno, filme comissariado para um concerto do festival Walk&Talk nos Açores, transformou-se numa curta-metragem: “Convidaram-me para fazer o concerto de abertura do festival e decidi convidar a Lucy Railton, que faz música electrónica experimental, para fazermos a residência em conjunto. Depois o Luís Fernandes, que comanda o GNRATION, convidou-nos a fazer uma peça para ficar online, com uma montagem fixa entre 10 a 20 minutos.”
Essa experiência em filmes-concerto e live cinema, levou-o a desenvolver um trabalho muito forte no que toca à articulação com a música e espetáculos ao vivo, algo que é reforçado pela sua visão cinematográfica: “Como eu venho do cinema experimental e não da media art, para mim tudo no ecrã tem que funcionar como um filme. Depois quando pões a banda, as luzes, o público, isso fica muito mais forte. No meu trabalho, apesar de todo o improviso envolvido, há uma estrutura em que sei mais ou menos a música, os tons, e sei que começo num certo ponto e sei onde tenho que estar no momento seguinte. Aquilo tem que continuar a funcionar por si só numa sala de cinema. A narrativa é muito importante também para os músicos e não tem que ser uma coisa óbvia. Nos meus filmes experimentais e concertos abstractos há sempre qualquer coisa que me guia e espero que guie de alguma forma o concerto. Às vezes coisas muito básicas como começar muito escuro e acabar muito claro. Só isso já é importante, porque te ajuda a restringir, a saber que tens que fazer determinada coisa. Como faço isto há muitos anos, já consigo respirar fundo, mas quando estás ao vivo o tempo é muito mais rápido. Se não tens pausas, é difícil. O mais importante para mim é teres uma narrativa, seja lá qual for.”
Sobre voltar a trabalhar filmes mais narrativos ou figurativos como Fade Into Nothing ou Guanche, projecto para o festival ALESTE na Madeira, que voltou a juntá-lo a Paulo Furtado e à actriz Iris Cayatte, o realizador acrescenta: “Apresentamos na Madeira, no Curtas Vila do Conde, no Porto, e é um projecto que é cinema, música e spoken word. Apresentamos no Curtas e tivemos muito bom feedback. É narrativo, mas também muito experimental. Mas a minha tendência é ir sempre para coisas não narrativas, apesar de haver sempre uma estrutura, como no Janela do Inferno: há uma ideia de percurso, uma narrativa, apesar de ser muito experimental, mas acontece mais quando trabalho com outras pessoas. No Guanche escrevemos um guião e acabamos por fazer uma coisa totalmente diferente.”
Nesse cruzamento de várias disciplinas artísticas, naturalmente, os projectos acabam por vir de impulsos diferentes. O facto de trabalhar num dos últimos laboratórios da Alemanha a fazer todos os processos analógicos (revelação, cópias de cinema, etc.), onde é responsável pelas digitalizações, fez com que fosse à procura de bobines de nitrato, “porque as cinematecas têm, mas aquilo está sempre muito bem guardado, porque é muito inflamável e é difícil ter acesso. E eles disseram-me que tinham lá umas latas. E aquilo eram imagens de um incêndio para aí de 1930, um filme que está completamente destruído, com imagens de um fogo num suporte que é altamente inflamável. E decidi que tinha que fazer alguma coisa com aquilo, uma coisa de 5 minutos, muito simples.”
Daí nasceu Berlin Feuer (2021), onde a forma se alia ao conteúdo representado, dando origem, pela sua fenomenologia, a um filme-chave e representativo do seu trabalho: “Digitalizei as imagens e estava a trabalhar com elas, mas achei que fazer uma coisa só com found footage, como o Bill Morrison faz, não era suficiente e decidi intervir na película. Muitos dos projectos que faço em película passam por uma primeira destruição. Digitalizo, faço uma segunda destruição, digitalizo, etc. Até quase o original ser perdido. No Guanche tenho isso: imagem limpa até um nível de destruição em que quase não vês nada. Gosto dessa ideia de o que fazes ser irremediável, de fazer os filmes como faço os concertos, com essa qualidade quase efémera.”
O que também ajuda a tornar o seu trabalho particularmente interessante e único é uma despreocupação com purismos desnecessários. Identificar as qualidades latentes dos materiais e suportes com que se trabalha, desafiando-se a expandir as características inerentes ao seu trabalho através dos mesmos, tem sido receita para os seus filmes: “Gosto de articular o digital com o analógico. Uso muito o digital, faço muita coisa em 4K. Não me interessa aquela ideia nostálgica da película ou do antigo. Isso não me interessa. Eu uso a película pela sua plasticidade e propriedades. E no Guanche isso é fixe, porque consigo no mesmo concerto ir de uma imagem muito limpa em que te focas numa imagem muito bem construída de forma cinematográfica e passar para uma totalmente caótica em que quase não vês imagem. O que tenho feito em alguns projectos como o Janela do Inferno é filmar em digital e passar para película. Destruir o analógico e voltar a passar para digital. Ando sempre entre uma coisa e outra. Acho que é isso que dá força ao meu trabalho, porque no cinema tu tens os puristas da película que fazem as cópias e não percebem nada de digital. Depois há a malta do digital que não percebe nada de película. Eu estou confortável nos dois campos e acho que o meu trabalho explora isso e valoriza-se por causa disso. Não tenho aquela coisa nostálgica, mas antes um interesse em intervir na película, seja pós-revelação ou na revelação com químicos, onde mudo os tempos, o PH da água… ou aplico efeitos de solarização como o Man Ray fazia.”
Para além dos espetáculos onde alia as suas imagens à música de outros, essa relação com a música e os seus atributos é também importante nos seus filmes: “Sim, a música acaba por ser uma paixão mais forte do que o cinema para mim, mas não tenho talento nenhum. Mas é aquela coisa de fazer música com imagens. É um conceito a que eu não gosto de me associar tanto, mas é um bocado visual music.”
A experiência em sala é a imersão nas qualidades materiais e plásticas das imagens criadas pelo realizador e da música a que se associam, numa fruição visual e sonora que não deixa de apelar a descobertas estruturais e narrativas por parte do espectador. Essa relação com a música é transposta também para a própria criação de vídeos musicais que, mais uma vez, se articulam com outros suportes: “Fiz um videoclipe para o Vessel que se chama Passion, que tinha tanto bom material de 16mm, de stills e tudo mais, mas o Vessel não queria lançar o disco em vinil, por motivos ecológicos. Então decidimos fazer uma fanzine, limitada a 50 unidades, com base nas imagens a 16mm que não foram usadas no videoclipe, para quem comprar o digital ter a fanzine. Depois o dinheiro era doado a uma instituição de mind charity, porque a música tem também que ver com isso. Portanto, a ideia era construir um livro que fosse uma espécie de filme. Esta dinâmica é uma coisa que me interessa muito. Obviamente que o meu trabalho é mais ao vivo e sobre esta ideia de construir coisas que não se repetem.”
Para além de March of Time, Pedro Maia apresenta ainda o videoclipe “Scotch Rolex and Shackleton – Deliver The Soul, na competição de vídeos musicais do 31º Curtas Vila do Conde.
Ricardo Fangueiro