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O Coração Gelado d’As Filhas do Fogo

É chocante ver o amor transbordante que jorra unanimemente das goelas dos críticos e espectadores face à última curta-metragem de Pedro Costa, As Filhas do Fogo. Enquanto nas suas últimas longas-metragens (algo que começa em Cavalo Dinheiro, mas que se torna muito mais prevalente em Vitalina Varela) já existia um incomodativo abraço do formato do tableau, isto era equilibrado com uma realização estilística da narrativa, muito única, que se dava a/ganhava com esta nova faceta. 

No entanto, neste último filme, Costa abraça completamente este formato, trazendo-o para primeiro plano e inflacionando-o de forma a cobrir uma totalidade: o filme é composto por um tríptico de enquadramentos apresentados em simultâneo onde três irmãs cantam, cada uma oprimida pela primorosa lavoura pictórica onde se insere. Tableaux vivants no verdadeiro sentido da palavra, quadros vivos: uma imagem quase estática onde o único movimento provém do esforço físico do cantar das irmãs, paradas nos seus lugares, e os pequenos movimentos do seu ambiente, como um screensaver de Windows.

Embora isto se possa dever ao facto de a obra se tratar de uma curta-metragem comedida, tudo o que o espectador pode fazer agora é rezar para que não seja um terrível presságio para o futuro da obra do cineasta, ou seja, que as suas futuras longas-metragens (a próxima para a qual esta curta foi um estudo) se dediquem a um debruçar absoluto nestes vícios que constituem por completo o estudo. Que Pedro Costa não se torne num Malick…

Parece um gesto quase malévolo por parte do LEFFEST programar este filme numa sessão conjunta com uma curta-metragem dos Straub-Huillet (Einleitung zu Arnold Schoenbergs Begleitmusik zu einer Lichtspielscene). Os tableaux vivants nados-mortos deste filme parecem ir contra tudo o que é potente no cinema de Straub-Huillet (seja isto devido a uma propositada perversão falhada, ou que se trate apenas de uma completa e inconsciente distorção).

Numa entrevista presente no catálogo da cinemateca deste casal de cineastas, Jean-Marie Straub faz esta declaração:

“Penso que deve haver uma “curva” na atenção, em que a um dado momento o olho e o ouvido deixam de estar separados. Estou convencido que CHRONIK DER ANNA MAGDALENA BACH é um dos filmes mais visuais que existem, na medida em que se vêem mais coisas neste filme do que num bom filme americano com muito movimento, com perseguições e tiros. Porque quando se tem um plano em que, no começo, parece não haver grande coisa, mas no qual, acaba-se por ver a vinte metros de profundidade um dedo que se move, uma peruca que se mexe porque debaixo desta peruca há um cérebro tenso, a fazer um trabalho, ou um braço que luta com um arco, ou uma boca que luta com as palavras de um texto, isto são não sei quantos acontecimentos visuais num só plano. Vê-se mil coisas, ao passo que num filme movimentado, quando as coisas vão bem, vê-se seis ou sete.”

Um espectador que se senta em sala para ver As Filhas do Fogo começa por ver seis ou sete coisas e, no momento em que os créditos determinam o fim da experiência, acabará apenas por ter visto essas seis ou sete coisas, nem mais nem menos (e tê-las visto da forma exata e específica que Costa quer que ele as veja). Não há uma curva na atenção no filme, porque não há mais nada para nele ver, independentemente do esforço ativo do espectador. Um filme feito de três imagens primorosas que no preciosismo do seu arranjo sufocam qualquer realidade ou complexidade que se poderia encontrar no cenário. Nada de real se sente na imagem, apenas o gesto limitado de conceção e organização do realizador em si.

As imagens tornam-se monólitos impotentes, pelo seu carácter singular e assoberbante significado superficial, mas sem a potência cósmica de perfurar a alma do espectador que caracteriza esse objeto simbólico. Toda a obra é usurpada por uma beleza parasítica, ao qual o filme capitula. As imagens (e o som, que é igualmente cúmplice!*) obedecem apenas ao princípio estático e coeso de beleza que Costa quer nelas impor e, ao se tornarem mirmidões dessa oca ideia estética, tornam-se tão superficiais como ela. Imagens “belas” vazias em serviço de uma “beleza” reles: o cúmulo da fealdade.

Há um aspeto que ilustra o defeito congénito do filme: a faísca entre a madeira. Um dos 3 enquadramentos consiste num grande plano de uma das irmãs em que a cara se encontra parcialmente ocultada por um conjunto de tábuas de madeira. Neste plano, numa pequena fresta entre duas das tábuas, vê-se um minúsculo cintilar quente e decidido da luz do fogo remetente à erupção central do filme. No momento da “curva”, na atenção do espectador em que ele repara neste pormenor há um entusiasmo face à complexidade do pequeno detalhe. Mas o espectador logo a seguir sente a repulsa. Repulsa que acontece assim que este se apercebe da artificialidade cínica necessária para esta colocação propositada no enquadramento, feita para criar este específico fascínio. Este fascínio só tem a validade da duração que demora a cada espectador entender que não há uma pulsão de vida na imagem, nem no cantar, nem no ambiente, e que este pormenor vivo, o único pormenor da imagem, é o seu gelado cerne: lá colocado para criar a ilusão de vida.

*A inserção do realizador de citações de Tchékhov na canção cabo-verdiana, parafraseando Costa na masterclass pós-filme, “numa obra com três irmãs, não dá para resistir à inclusão de Tchékhov”.

Vasco Muralha

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