Algures perto de Nova Escócia, província canadiana, existe um pequeno estrato arenoso conhecido como ilha Sable, reserva natural e casa de um rico ecossistema, que conta com uma única habitante humana. Há mais de 40 anos que Zoe Lucas documenta os batimentos cardíacos da natureza que a rodeia e tudo aquilo que vem à costa, numa obsessão taxonómica.
Em Geographies of Solitude, testemunhamos o encontro de duas ondas de correntes diferentes, um diálogo entre a ambientalista e a realizadora, Jacquelyn Tills.
Guiada pela mão da residente, a cineasta leva-nos numa primeira instância a explorar a fauna e flora do local, registando os detalhes do mais pequeno inseto, ao céu estrelado. A ilha parece responder à sua missão, pois tal como a câmara não tem medo da dureza da natureza, também esta não tem medo de ser vista e de encarar o olhar de frente. Quanto a Zoe Lucas, esta já faz parte da paisagem. O seu rosto é um de muitos flocos de neve, um de muitos grãos de areia.
Geographies of Solitude © Jacquelyn Mills
Nunca nos é revelado exatamente o porquê de ter permanecido lá estes anos todos, já que o filme não se preocupa em responder a questões práticas sobre esta vida solitária, muito para a desilusão da curiosidade que inevitavelmente se levanta. Por tudo aquilo que nos mostra, apenas sabemos que “perdeu o rumo de tudo o resto” e que “ficar não foi uma escolha”. À medida que também nós somos sugados no vórtice fascinante da ínsula, não temos escolha senão percebê-la. É um sítio onde o nascimento e a morte constituem dois lados da mesma moeda e os ciclos da vida são unicamente explícitos. Como Zoe nos diz, viver é morrer e ser reciclado.
Essa diversidade biológica proporciona, simplesmente por existir, a poesia que compõe os haikus visuais que vão pautando a obra. Neste sentido, a cineasta segue os princípios daquilo que vê, ao construir um mosaico sensorial de diferentes formatos cinematográficos, explorando o meio, tanto quanto a forma. Gravado em digital, bem como a 16mm, o filme emerge-se completamente no cenário, metamorfoseando-se de modo experimental na ilha. Película é processada manualmente em plantas, mergulhada em estrume de cavalo, exposta a luz lunar e unida a lixo marítimo. Por outro lado, ouvimos o som do mar, da madeira e frequências de seres vivos traduzidas em música.
Geographies of Solitude © Jacquelyn Mills
A partir do momento em que interiorizamos a maravilha lírica a que somos expostos, o foco torna-se noutro. São postos, literalmente, em grande plano nos milhares de balões recolhidos do mar e a variedade inimaginável de plásticos chegados à costa, que a residente limpa e cataloga minuciosamente. Quando algo acontece no continente, a ilha sabe e a ilha sente, porque sofre as consequências. É nesta missão ambientalista que a obra permanece, num aviso sobre o futuro que o planeta poderá não aguentar.
Quando Jacquelyn Mills anuncia o último rolo de filme, é com uma certa melancolia pelo final que sabemos que Geographies of Solitude é, no fundo, a mensagem engarrafada de Zoe Lucas para o mundo. Só resta saber se chega à costa.
Margarida Nabais
[Foto em destaque: Geographies of Solitude © Jacquelyn Mills]