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Mato seco em chamas – A ficção científica está aí, para quê criá-la?

Para os mais familiarizados com o cinema brasileiro, a coincidência de vários géneros cinematográficos no mesmo filme não causa surpresa. Trata-se, aliás, de um elemento distintivo do cinema brasileiro desde Glauber Rocha, admirável na articulação e conciliação de diferentes linguagens cinematográficas.

Os seus filmes foram e são um dos mais lúcidos e vorazes retratos sociais e políticos do Brasil, em nada convencionais, e, para dizer o óbvio, absolutas obras-primas da história do cinema. Injusto seria não mencionar, do lado do documentário, Eduardo Coutinho, de quem o filme Cabra marcada para morrer revolucionou o género no Brasil.

Herdeiro do estilo e da índole social e política das obras destes realizadores, o cinema brasileiro contemporâneo, que, cada vez mais, conhece outros territórios fora do eixo Rio de Janeiro – São Paulo e que tem dominado a produção cinematográfica brasileira das últimas décadas, vem a afirmar-se com temeridade como um cinema não só riquíssimo nas suas escolhas formais estéticas, mas também como um cinema que não se cinge meramente à representação, isto é, que se faz comunidade com aqueles que filma. 

Para compreender e dar significado à designação cinema-comunidade é crucial falar de um dos seus fundadores, Adirley Queirós. Sem ele, o Brasil, mais precisamente Brasília, terra natal do realizador, continuaria um mistério tanto para nós como para si próprio. Mato Seco em Chamas, co-realizado com Joana Pimenta, é mais um passo na direcção do cinema-comunidade. 

Pensado à luz de arquétipos ficcionais, Mato seco em chamas é filmado como se de um documentário se tratasse. Se, a um primeiro olhar, o filme parece ser nada mais do que um exercício ficcional de um cenário pouco provável, absurdo mesmo, basta atentar no actual estado de coisas no Brasil, no atual governo brasileiro e no estatuto de cidade satélite da capital política de Brasília para que o reino absurdo de hipérboles e efabulações passe a definir e a configurar a realidade como a maior das ficções científicas. É esta a razão apontada por Adirley para o afastamento da ficção científica, género adoptado nos dois filmes anteriores a Mato Seco em Chamas, Branco Sai, Preto Fica e Era uma vez Brasília. A ficção científica está aí, para quê criá-la?

Mato Seco em Chamas, Adirley Queirós, Joana Pimenta © Cinco da Norte, Terratreme Filmes

Uma imagem com exterior, noite, escuro

Descrição gerada automaticamente

Iluminadas, talvez assombradas, pelas luzes de Brasília, as paisagens áridas de Sol Nascente, uma das maiores favelas do continente sul americano, dão solo a oleodutos na Ceilância, descoberto e aproveitado por Léa, Chitara e Andreia para alimentar os circuitos do mercado negro da venda de gasolina. Reservado aos planos nocturnos, o ambiente de criminalidade em torno destas mulheres não deve ser tido apenas como uma inevitabilidade daqueles que nascem e vivem em favelas. Ele exige um olhar atento que nele perceba modos de sobrevivência ancorados numa resistência a formas de poder que privam as comunidades da sua emancipação, da sua subsistência e, acima de tudo, da sua dignidade enquanto substância primeira da vida em comunidade. E se o crime se faz à noite, a resistência faz-se corajosamente de dia. 

Da montagem relevam imagens da sobrevivência e da resistência, não enquanto pólos opostos, mas como dois lados de uma mesma moeda, sendo que cada qual se inscreve no mundo como condição de existência e de expressão da outra e de si. Para sublinhar a circularidade do vínculo em jogo, vão sendo intercaladas imagens documentais das marchas dos militantes de Bolsonaro durante as últimas eleições presidenciais do Brasil.

Uma imagem com terra, exterior, edifício, equitação

Descrição gerada automaticamente

Andreia Vieira Mato Seco em Chamas, Adirley Queirós, Joana Pimenta © Cinco da Norte, Terratreme Filmes

Até aqui tudo nos é estranho, evidentemente, com excepção de Léa, Chitara e Andreia. Ao contrário das representações paradigmáticas, são estas personagens que lideram a organização criminosa e o movimento político em defesa do povo prisioneiro. Porque se a subversão de quem ocupa os lugares de poder é ficcional, mesmo tratando-se da liderança de uma organização criminal clandestina, o desamparo não só é real, como é constitutivo das suas próprias existências. Daquelas mulheres que são mães e nem por uma vez se menciona o nome do pai, daquelas mulheres cuja orientação sexual pode tornar, e em grande medida torna, ainda mais difícil ser-se mulher. Em nada o filme exagera, em nada se assemelha ao preenchimento de requisitos para a actualidade, tudo é natural à medida de ser verdadeiro. 

Perguntámos a Adirley Queiros e Joana Pimenta se Mato seco em chamas é um filme feminista, uma leitura possível que alegrou os realizadores, que confessaram ser sobretudo “um filme de classe, daqueles de antigamente, marxista”, no qual também permeia o movimento e a luta feminista. Como lhe chamámos anteriormente, trata-se de um filme-comunidade, no sentido que lhe é dado pelos realizadores. Um filme tomado por aquelas que são filmadas e, em última instância, a elas devolvido. E só quando a vida, o real, na sua tragicidade, tomar de assalto a ficção é que termina Mato seco em chamas. O fim não chega por decisão dos realizadores, mas através de Chitara, para quem não é mais possível continuar a encenação quando uma das personagens, por razões que não revelaremos, não pode mais fazer parte deste filme-comunidade.
Mato seco em chamas é mais um exemplo de como o cinema brasileiro contemporâneo é indubitavelmente um dos cinemas contemporâneos mais ricos. E dizemos isto porque acreditamos que é um dos poucos guardiões do gesto fundacional do cinema, o gesto de mostrar, que só é estético se for ético. Um cinema para o qual o gesto de mostrar ainda é um dever ético do olhar, um dever ético do filmar, em suma, um dever ético do cinema.

Cátia Rodrigues

[Foto em destaque: Mato Seco em Chamas, Joana Darc Furtado© Cinco da Norte, Terratreme Filmes]