Janine Gonçalves, argumentista e realizadora de Pombal, estreia-se no Indielisboa com Às Vezes os Dias, Às Vezes a Vida. Lena, uma mulher com dois trabalhos e uma filha para cuidar. Uma descoberta do que resta desta vida e do seu próprio corpo. A realizadora portuguesa que, em 2015, já tinha realizado Eu, Por Ti, Quem Era?, um documentário performativo sobre a sua própria família, brinca muito bem com esta fronteira entre ficção e realidade. O tema da família, mais uma vez presente na Competição Nacional desta edição do Indielisboa, é um tema próximo para Janine Gonçalves, que traz muito da sua experiência pessoal para dentro dos seus filmes.
O trabalho de realização acaba por ser um trabalho extremamente introspectivo, mesmo quando os temas não são próximos do realizador. Há neste trabalho uma necessidade de doação, ou seja, doar qualquer coisa de si em prol do filme, para assim lhe podermos chamar o seu filme. É como se o filme saísse das “entranhas” do realizador. E este Às Vezes os Dias, Às Vezes a Vida sai, efetivamente, das “entranhas” de Janine Gonçalves, é notório desde os primeiros minutos. Em primeiro lugar, as filmagens decorreram na sua terra natal – Pombal – que desde logo ajuda a situar a história num plano mais pessoal do que propriamente o ficcional. Isto, por muito que não seja dito, é de fácil perceção pela forma como todas as personagens secundárias interagem entre si. Estes não-atores pombalinos alinharam com Janine nesta aventura, e acabaram por segurar muito bem a moldura para Lena, interpretada por Kim Ostrowskij, a única atriz de profissão de toda a curta-metragem.
O filme é muito centrado nesta personagem, que aparece em praticamente todos os planos. Lena é uma mulher viúva, mãe de uma filha, e que trabalha para conseguir pagar as suas contas, não querendo voltar para a casa dos seus pais. A força desta mulher é visível no filme, mesmo que o seu rosto não nos seja dado assim tanto. Na maioria das vezes, a câmara filma Lena de costas ou em planos muito aproximados. Ambas as escolhas estéticas acabam por fragmentar, de certa forma, a personagem, visualmente, o que pode ser um indicativo da própria fragmentação do seu interior.
Estamos perante uma mulher, como tantas outras mulheres, que vê as 24 horas do seu dia-a-dia ocupadas pelo seu trabalho (trabalhos) e pela sua família, e a sua própria vida parece perder-se no meio disso. Muitas vezes, temos a sensação de que não existe mais nada para além das obrigações diárias. Onde é que fica a identidade desta mulher? Onde é que ficam os seus hobbies e gostos pessoais? Onde é que fica o seu tempo consigo mesma? Esta é uma história de autoconhecimento, de amor próprio ou, pelo menos, de uma procura por este amor. E se Janine Gonçalves nos diz que esta Lena é um reflexo da sua mãe, podemos interpretá-la ainda como um reflexo dela mesma, e de nós todas, mulheres.
O nosso corpo é revelador do nosso interior e nem sempre tiramos o tempo necessário para cuidar dele ou apreciá-lo. A masturbação, tema introduzido no filme através de uma conversa de rádio, é uma das formas de amor pelo nosso próprio corpo. A linguagem da masturbação é uma linguagem de cuidado e de descoberta, e para Janine Gonçalves e para a sua personagem principal esta descoberta parece ser necessária, contrariamente ao que é dito por uma das personagens secundárias presentes no carro (que vimos a descobrir no final da sessão ser a própria mãe da realizadora). Infelizmente, ainda há um preconceito muito grande face à masturbação e ao prazer da mulher, no geral. Para muitos, sexo ainda é sinónimo de procriação e não de amor, intimidade e prazer. Este filme vem um pouco em jeito de chamada de atenção para esta necessidade de amor próprio. Não há mais nenhuma forma de amor se não houver, primeiro, amor próprio – há uma incapacidade de amar o outro se o amor por nós mesmos for escasso.
A curta-metragem de Janine Gonçalves é ela mesma uma forma de amor próprio: desta personagem que descobre o seu corpo outra vez, numa cena muito bonita que joga com os vários reflexos dos espelhos presentes na sua casa de banho; e ainda da própria Janine e da sua mãe, indiretamente. Por vezes, a vida não parece sorrir, parece dominada, assim como o filme, pelos tons azuis, soturnos e melancólicos, mas é preciso sorrir para ela na mesma. E esta mensagem paira na sala de cinema após a exibição deste pequeno mas belo filme. Às Vezes os Dias, Às Vezes a Vida, em competição nacional no Indielisboa, pertence à sessão de Curtas Nacionais 1, ao lado de Cemitério Vermelho, de Francisco Lacerda, Idade Óssea – Um Filme em Sete Quadros, de Isabel Aboim Inglez, e Tornar-se um Homem na Idade Média, de Pedro Neves Marques.
Inês Moreira
[Foto em destaque: Às Vezes os Dias, Às Vezes a Vida, de Janine Gonçalves – © Waves of Youth]