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After Yang
: em defesa da ficção científica

Quando o android Yang se avaria, Jake procura uma forma de o reparar. Pela sinopse, o mundo futurista de robôs e clones baseado no conto de Alexander Weinstein poderia ser um blockbuster repleto de espetáculo tecnológico. Em vez disso, After Yang é aquilo que faz a ficção científica no seu melhor: ao invés de adotar como foco a tecnologia, utiliza-a como meio para desenvolver uma reflexão profundamente humana em que as personagens são o verdadeiro foco.

Conhecido pelos seus videoensaios sobre o estilo de cineastas conceituados, Kogonada estreou-se na realização em 2017 com a longa-metragem Columbus. Se essa foi a sua primeira tentativa enquanto realizador, After Yang (A Vida Depois de Yang) é a sua consolidação enquanto uma das vozes a seguir no cinema contemporâneo. A produção da A24 chega agora às salas portuguesas após estreia internacional no Festival de Cannes de 2021 e um Prémio Alfred P. Sloan no último Festival de Sundance.

Em After Yang, Jake (Colin Farrell) e Kyra (Jodie Turner-Smith) vivem uma vida aparentemente normal com a sua filha chinesa adotada, Mika (Malea Emma Tjandrawidjaja), e o seu «irmão» artificial. Yang (Justin H. Min) é um «tecnosapiens» cultural, um robô cujo propósito é ajudar Mika a aproximar-se das suas heranças culturais. No entanto, ele acaba por fazer mais do que isso, já que Jake e Kyra são pais distantes que passam pouco tempo em casa – um mal moderno ubíquo na atualidade – e sentem dificuldades em criar uma ligação com a sua filha. E Mika vai crescendo, mesmo quando eles não estão lá para o testemunhar.

Numa sequência de créditos iniciais inesquecível, a família participa numa competição virtual de dança contra outras famílias do mundo. É um momento íntimo, cómico e encantador, mas provavelmente a única cena durante todo o filme que nos fará soltar um riso. É neste contexto que o robô da família avaria, iniciando assim a vida titular depois de Yang. O que se segue é a missão de Jake para o reparar, que o leva numa viagem profundamente comovente através das memórias de Yang e o permite conhecer o «tecno» de formas que nunca imaginara possíveis.

After Yang, de Kogonada © A24

Yang começara, através de um dispositivo interno que lhe permitia gravar e armazenar alguns segundos por dia, a memorizar os momentos que considerava mais importantes: Mika a dar os primeiros passos; cenas da beleza quotidiana como a luz solar a bater nas folhas das árvores, um prato de fruta ou os raios de sol a entrar pela janela adentro; ternurentas cenas de família entre Mika e os pais; um arco-íris ou as primeiras flores da primavera; momentos românticos entre Jake e a Kyra; um sapo num dia chuvoso; a sua própria figura a olhar-se ao espelho; e inúmeras memórias de uma rapariga misteriosa, sugerindo que Yang estaria apaixonado por ela. Através do olhar de Yang, Kogonada é capaz de capturar de forma brilhante, naquela que é talvez a sequência mais tocante do filme, a beleza da vida em cada instante, invocando paralelamente questões mais óbvias acerca da capacidade de um ser artificial se apaixonar ou da sensibilidade que lhe permite decidir quais os momentos que deseja recordar. As respostas que Jake encontra nas memórias de Yang podem não permitir tê-lo de volta, mas talvez tragam algum conforto na sua ausência e uma oportunidade de reencontro para esta família em que todos se encontram tão distantes.

After Yang, de Kogonada © A24

Kogonada cria uma linguagem muito própria, mergulhada num tom melancólico e até de mistério, sem aderir às convenções narrativas e de género mais comuns. A direção de arte é um dos destaques a nível técnico, evidente nos cenários elegantes da casa futurista, mas também a fotografia de Benjamin Loeb e a palete de cores distintiva em que se realçam os verdes da flora omnipresente. A montagem, do próprio Kogonada, é também admirável, sobretudo na opção de cruzar e repetir diferentes takes da mesma cena nos momentos em que assistimos a recordações de Jake ou Kyra. Esta repetição desorientadora transmite de forma habilidosa a instabilidade e volatilidade da memória humana, especialmente quando contrastada com as memórias de Yang, perfeitamente armazenadas num dispositivo externo e reproduzíveis com total exatidão. O ritmo silencioso e minimalista do filme não faz dele, em momento algum, demasiado lento – cada cena é absolutamente essencial e faz a história avançar sem um momento desperdiçado e em apenas 96 minutos. Esta pode, no entanto, ser uma faca de dois gumes, já que a duração é talvez demasiado curta para a amplitude de temáticas que o filme tenta explorar, ficando a sensação de que o desenvolvimento poderia ter sido mais aprofundado. Ao mesmo tempo, After Yang está muito dependente de uma ligação emocional entre o espectador e estas personagens, tornando-se uma obra com mais estilo do que substância caso esta ligação não se verifique.

A extensão ambiciosa dos temas a abordar faz com que o filme possa ser lido a partir de várias lentes: a família e a herança cultural, a perda e o luto, o estatuto da inteligência artificial, a memória, as nossas relações face à tecnologia, a complexidade das relações interpessoais ou, pura e simplesmente, a beleza de se estar vivo. After Yang é sobre tudo isto e talvez mais, e Kogonada é cauteloso em levantar as perguntas certas sem oferecer respostas concretas. Quando Jake pergunta a Ada (Haley Lu Richardson), a jovem por quem Yang estaria apaixonado, se este alguma vez se debatera com o facto de ser um «tecno», ou se alguma vez manifestara o desejo de ser humano, Ada, que é um clone, não consegue conter um riso abafado – «Isso é uma pergunta tão humana de fazer, não é? Vocês assumem sempre que os outros seres querem ser humanos, mas o que há de tão bom em ser humano?». Um dedo apontado ao antropocentrismo que tão bem nos caracteriza. Contudo, há algo na cena em que Yang e Jake conversam sobre chá que sugere que talvez a personagem de Colin Farrell tenha algumas razões para ponderar a questão, nomeadamente quando Yang diz «quem me dera que, para mim, o chá chinês não fosse apenas factos». Do mesmo modo, a sua coleção de borboletas sugere, no mínimo, uma sensibilidade e admiração pela vida para além dos «factos» que as suas memórias já haviam revelado.

After Yang, de Kogonada © A24

O filme não se preocupa em responder a questões práticas sobre as tecnologias que habitam este mundo: o funcionamento e origens dos clones e dos androides; a cápsula que se conduz sozinha e os transporta para onde querem; a menção a «memórias» que se vendem numa loja; a tecnologia avançada de videochamada que utilizam para comunicar à distância. Todas estas inovações integram harmoniosamente o universo e são periféricas para a história que Kogonada quer contar, que é verdadeiramente humana, colocando After Yang no mesmo universo em que poderíamos encontrar a obra literária de Kazuo Ishiguro ou filmes como o célebre Her (2013) de Spike Jonze.

After Yang é uma demonstração do poder da ficção científica para nos fazer olhar para dentro. Afinal, este género de contar histórias não se restringe apenas a cenários ambiciosos de guerras intergalácticas ou de contacto com espécies extraterrestres, mas também pode oferecer, de modo mais subtil, através da tecnologia e da ciência, um espelho para nós próprios, levantando aquelas que são as grandes questões acerca da humanidade e das relações humanas. Kogonada executa assim mais um pequeno passo na já longa missão de reconhecimento da ficção científica enquanto género digno de prestígio entre os críticos, algo que, salvo raras exceções – vêm imediatamente à memória clássicos como 2001: Odisseia no Espaço, Stalker ou Solaris –, ainda está longe de ser a realidade comum.

Marta Batista

[Foto em destaque: After Yang, de Kogonada © A24]

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