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As Chamas Purificadoras de Fogaréu

Fogaréu é o primeiro longa-metragem da jovem cineasta brasileira Flávia Neves. Já foi dito sobre o cinema brasileiro que é impossível não analisá-lo segundo as extremas duras condições de realização nacional. Entretanto, seria absolutamente desleal utilizar essa característica – a dura realidade brasileira – como um elemento de escusa para qualquer tipo de falha. Mesmo porque, apesar do sistema brasileiro, filmes excelentes são produzidos todos os anos, com reconhecimento tanto do público local ou internacional.

Porém, a ideia de que precisamos analisá-los sob a ótica da tal proclamada realidade pode ser usada, antes de mais nada, como uma chave de interpretação para os temas. Pois tanto o Brasil quanto o pensamento sobre o Brasil são em si aspectos extremamente complexos. E não é raro nossos filmes quererem dar cabo de todo o peso material, todas as cicatrizes abertas, todas as dores de nosso passado, presente e projeção de futuro.

O filme começa e termina com longos planos contemplativos das chamas, que depois se sobrepõem às imagens da ficção. Acompanhamos Fernanda, interpretada por Bárbara Colen – uma personagem cujo princípio quase que reprisa seu papel em Bacurau. Ela chega à cidade de sua família, no interior do estado de Goiás – um dos mais sub-representados da cinematografia hegemônica. Se em Bacurau a luta é armada, em Fogaréu ela passa no campo simbólico. A protagonista é apresentada como descarada já em seus primeiros minutos de tela. “Eu tenho síndrome de Huttington”, diz ela a seu tio, o político Menezes, interpretado por Eucir de Souza, preocupado demais com a sua reeleição para um terceiro mandato para se ocupar com problemas de família. 

Fernanda logo encara a questão dos “Bobos”. Quem são eles? Figuras aparentemente assustadoramente comuns da região, portadores de deficiência que são usados em trabalhos domésticos para “dar uma oportunidade”. Fernanda chantageia uma noviça com cigarros, que lhe dá informações sobre eles. Conta o caso de uma família que teve uma filha “boba”, a doou e a buscou de novo como adotada, assim encerrando-se no triste destino que têm todos eles. É uma forma de escravidão contemporânea que se dá de modo implícito, de acordo com a tese de doutorado de Marilucia Melo Meireles.

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(Fogaréu de Flávia Neves – © Bananeira Filmes)

A causa disso? Não é certo. As principais hipóteses giram em torno da presença do mercúrio e dos relacionamentos consanguíneos. A onipresença desse arquétipo de personagem, misturado à política, acaba por gerar um grande tom de horror social. Mas o roteiro, co-escrito com Melanie Dimantas, e que contou com uma supervisão de Lucrécia Martel, nos leva muitas vezes para a comédia absurda. E Fernanda encarna um personagem que apenas poderia existir na imaginação, devido a seu grande atrevimento em enfrentar a família em busca de seu passado, o que tentam de toda forma evitar. Há um grande complô da cidade contra ela consiga esse objetivo, e o mistério de seu passado é uma clara analogia com a história do Brasil.


Na sequência mais deslumbrante do filme, Fernanda conversa com uma cacique de uma tribo indígena que a permite entrar no rio. Na trilha sonora, Elis Regina passa a cantar “Gracias a la Vida”, a câmera faz uma panorâmica e vemos duas meninas do passado se beijando. Uma sobreposição e vemos imagens vertiginosas de queimadas. Waldir Xavier assina o som e muitas das músicas presentes na trilha, além de dividir a montagem com Will Domingos.

Com todas essas virtudes, o longa-metragem não é ausente de falhas. Me parece haver alguns problemas na atuação de Bárbara Cohen e em outras partes do elenco, que talvez se beneficiassem mais de um estilo à la Teatro Oficina, dado o conteúdo muitas vezes  tão onírico do roteiro – mas a cena mais exigente do ponto de vista da equipe é perfeita: em um grande êxtase, Fernanda dá o troco para sua família com muita criatividade, e pagará caro por isso. Que o fogo anunciado tenha o dom de cicatrizar nossas feridas.

Chico Barbosa

[Foto em destaque: Bárbara Colen, Fogaréu de Flávia Neves – © Bananeira Filmes]