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CINENOVA 2024 – SESSÃO #5

NOVA PROVOCAÇÃO | Sangro Sangro

Pipás
Lili Toth | Hungria, 2023

Pipás, de Lili Toth © Direitos Reservados

Pipás é um espaço privilegiado de encontro entre a pintura e o cinema. É uma história sobre violência contada num registo de profunda brutalidade. As pinceladas são vigorosas, o movimento é brusco e as figuras não têm os seus contornos definidos: são borrões negros que sangram ao som de uma guitarra. O filme serve-se do género documental e opera, simultaneamente, uma desconstrução da figuratividade. Não estamos – ainda – no domínio da abstração, mas prevalece a indefinição em torno da figura de Pista Pipás. Envolto no fumo do seu cachimbo, este assassino surge como a reminiscência de um passado sombrio, de uma lenda húngara desvanecida pelo tempo.  

Maria Inês Mendes

Ostra Negra
João Carlos Pinto | Portugal, 2023

Ostra Negra, de João Carlos Pinto © Direitos Reservados

Portugal vive até hoje sob as sombras do seu passado colonialista. O sentimento de culpa geral é autossatisfeito, ou seja, o caminho acaba nesta admissão abstrata – a admissão chega. A abstração é a própria causa deste curto-circuito: mesmo ainda estando pessoas vivas que presenciaram estes feitos, a memória coletiva é de um plateau uniforme de “mal”. Todos sabem que foi algo sinistro, mas encontra-se demasiado compartimentado a um plano conceptual. Há algo essencial no parafrasear que Daney faz de Bazin no Travelling de Kapo, “se foi filmado, eu tenho de o ver”: a crueldade necessária de enfrentar o real. Na apresentação do restauro do seu filme Ato dos Feitos na Guiné, Fernando Matos Silva falou do choque que foi para certos espectadores ver imagens reais deste acontecimento atroz, o abstrato a tornar-se concreto. Quantas vezes vemos as positivas imagens da revolução em comparação com estas violentas imagens do nosso passado? Há algo de muito nocivo nesta disparidade. Em Ostra Negra o espetador é enfrentado por estas imagens, numa montagem dinâmica que não suaviza a sua crueza. O filme segue uma lógica sensorial que extrai das imagens a sua potência através de uma elevação tenebrosa, algo que se torna claro, especialmente,  no trabalho minucioso do campo sonoro (penso até agora enquanto escrevo este texto num específico som de um pé a pisar a lama). Paradoxalmente, esta torna-se a maior força do filme: a criação artística deste espaço elevado impactante, sem que o artifício alguma vez deixe o espectador esquecer a realidade destas imagens.

Vasco Muralha

Babushka
Simon Höbert | Áustria, 2022

Babushka, de Simon Höbert © Direitos Reservados

Áustria, 1945. Dois soldados russos surgem na casa de Marie e sua avó. Com medo, ela esconde a menina dos desertores. Entretanto, no meio da noite, um deles a vê. O encontro dos dois acaba por se mostrar diferente das expectativas.

Um filme que se poderia passar nos dias atuais. “Are they real devils?”, Marie pergunta para a avó. No meio de composições e de uma fotografia que transforma os planos em verdadeiros quadros, Höbert nos levanta tal questionamento. Cercado pelo medo e pela incerteza dos acontecimentos, ele mergulha nos personagens com a missão de ir além da superfície, representada pela personagem da avó, que toma como certeza os pré-conceitos que carrega. 

Babushka nos toca, nos faz refletir na existência de afetos mesmo nos momentos que, para muitos, seriam improváveis. Há um alguém para além de um país ou de qualquer motivação política.

*A presente folha de sala encontra-se escrita em português do Brasil.

Lílian Lopes

Sangro Sangro
Vera Barquero | Portugal, 2022

Sangro Sangro, de Vera Barquero © Direitos Reservados

Mês após mês, lua após lua. Num fluxo ininterrupto de repetições, sangramos. O que é que significa este sangue? É esta a condição necessária para ser mulher? Na escultura, na pintura, no cinema. Em estátuas e em museus, nas montras e nas paredes do metro são dispostas imagens da mulher. Mulheres despidas, desprovidas de encobrimento, apenas conviventes com a sua condição feminina, percecionadas como objeto de contemplação e de desejo, quer seja este puro ou impuro.

O que é o sangue que sai de nós? Porque é que tem de ser escondido? Vera Barquero, em Sangro, Sangro (2022), explora de forma curiosa este movimento de encobrimento generalizado que mulheres fazem do sangue que menstruam. 

Através de técnicas de montagem que apologizam a ideia de repetição, a diretora mostra-nos a convivência com este fluxo, num exercício de abolição do tabu cultural e de promoção de uma compreensão empática da menstruação. Constitui-se essencialmente como uma renúncia ao estereótipo de que o período é símbolo de impureza, estereótipo este que tem sido alimentado desde sempre por mitos sobre a fertilidade e a natureza desconhecida do ciclo menstrual. Por isso, aqui contraria-se o tabu e subverte-se o constrangimento, transfigurando-o para questões pertinentes. Sangro, Sangro apresenta-nos um contraste preponderante, que deve ser pensado. Mostra-nos, por um lado, variadíssimas imagens de mulheres despidas como metáfora de um foco no corpo como objeto sexual, onde a feminilidade e a sexualidade são diretamente associadas ao corpo feminino, predominando uma imagem idealizada da mulher que não corresponde à realidade. Por outro lado, mostra-nos o que, tendencialmente, é e tem de ser sujeito ao encobrimento porque se acredita ser nojento ou um não-assunto, daí Sangro, Sangro desempenhar uma excelente função na tarefa de mostrar o que ninguém quer ver – o real, o sangue, o fluxo, os tampões, o desconforto. 

Ao longo desta curta-metragem é muito fácil deixar-se levar pelo clima desconcertante que se vai instalando. Dado pelo forte trabalho de som, pela justaposição de imagens, e pela interferência (mais que necessária) dos intertítulos, o ambiente de rotina que o espectador sente é dado por este mesmo ritmo conseguido através da montagem. Através desta recorrência habitual de sequências de imagens – da reiteração do sangue “Eu sangro, sangro, sangro” – o espectador consegue aceder a uma fração da condição de viver como pessoa que menstrua. 

O sangue que sai de nós não nos define como mulheres. Desafiar o tabu que rodeia a menstruação requer a desestruturação das hierarquias de poder patriarcais e a promoção da igualdade de género em todos os subdomínios da sociedade. Isso implica fazer filmes como este. Filmes que mostram o desconfortável. Implica, não só mostrar mulheres nuas, mas cruas. Implica um trabalho constante de educação sobre o real, sobre a menstruação e outros temas comummente interditos ou não tão trabalhados. Implica a capacitação das mulheres a fazerem escolhas sobre os seus corpos e saúde, ao por exemplo tomar a pílula (ou não), contrariando a tendência patriarcal de controlo e regulação do corpo feminino, para que se estabeleçam ambientes onde a experiência feminina seja valorizada e tratada com o respeito e a dignidade que merece.

Catarina Gerardo

Le Chant des bêtes
Titouan Ropert | França, 2023

Le Chant des bêtes, de Titouan Ropert © Direitos Reservados

Para um jornalista desportivo, numa França invadida pelo Euro 2022, a competição desportiva é, subitamente, posta de lado quando recebe uma carta inesperada. Com ela, uma pen cheia de vídeos, imagens gráficas de um matadouro. Ruben, o jornalista, começa então a desenrolar o novelo desta narrativa, movido por repulsa e frustração. Aproveitando o espírito e estética do Dogma 95 — a câmara inquieta, as imagens de vigilância e a mise-en-scène contida — o filme denuncia as práticas repugnantes dos matadouros e as lágrimas de crocodilo de quem as gere.

Da alucinação à mais real imagem (atentem o olho, saberão de qual falamos), Le Chant des bêtes é um testemunho de como a imagem cinematográfica é capaz de filosofar, trazendo questões já discutidas por filósofos como Derrida, como a fronteira abismal de como vemos o “outro” (animal) neste meio humanocentrista. 

Kenia Polheim Nunes

As seguintes folhas de sala são uma parceria com o CINENOVA – Festival de Cinema Interuniversitário Português 

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