Era um dos momentos mais aguardados do festival e Fogo-Fátuo não desiludiu na hora da sua estreia nacional no encerramento do 30º Curtas Vila do Conde. Como comédia que se assume, o filme cumpre eficazmente o seu propósito se o barómetro são as gargalhadas ouvidas na sala. Arrojado em todos os sentidos, Fogo-Fátuo é mais um passo na vontade de João Pedro Rodrigues avançar naquele que é o cinema em que acredita: um cinema despojado de barreiras e fórmulas gastas, selvagem, lascivo e arriscado.
Esta “fantasia musical” do realizador de Fantasma (2000), Morrer Como um Homem (2009) ou O Ornitólogo (2016), conta a história de um rei no seu leito de morte, no longínquo e, quiçá, erótico ano de 2069, onde aquele recorda a sua juventude, época em que se voluntariou para ser bombeiro e conheceu Afonso. Memórias essas que são desencadeadas por um carrinho de bombeiros esquecido com que o seu sobrinho-neto brincava no quarto.
Divertido e docemente satírico, a leveza do filme deve-se, não à ligeireza da sua narrativa, mas à forma descomprometida com que olha as várias temáticas que apresenta. Seja o lado monárquico da família de Alfredo; os traumas da história colonial; a classe, cor e sexualidade dos protagonistas; ou os mitos fundadores da portugalidade e todos os preconceitos inerentes, o filme aborda tudo isso com um humor agridoce, limitando-se a expor as singularidades da cultura portuguesa. Sem medo de pôr o dedo na ferida, fá-lo (passe o trocadilho) de forma suficientemente subtil e satírica para o fazer adquirir essa delicadeza. Para além do riso provocado, que numa comédia deverá ser o elemento central à experiência do espectador, há esse subtexto sobre toda a relação que temos com a nossa cultura e as nossas referências.
É num momento cerimonioso de refeição, perante os elementos da sua família vergada à ideologia monárquica, que Alfredo, com as notícias dos incêndios em Portugal a ouvir-se na televisão, partilha a sua vontade de ser bombeiro, levando à gargalhada desenfreada da sua mãe. Contudo, o príncipe leva a sua decisão a sério e já no quartel mostra toda a sua ingenuidade na entrevista com a comandante que acaba por lhe apresentar Afonso. É este que o leva até aos balneários dos bombeiros onde, desnudados depois do serviço, interpretam e reconstituem pinturas, supostamente famosas, para testar o conhecimento de Alfredo, também estudante de história de arte, numa sequência de planos eróticos em que os corpos masculinos se entrelaçam em poses sexuais e viris. De grande efeito cómico pelo absurdo daquele jogo, a cena prepara-nos para a diversão descomprometida, mas comovente da história daquele casal. O desejo e a liberdade dos dois bombeiros contrastam com a pose empedernida da burguesia representada no filme.
Ao longo do filme, João Pedro Rodrigues vai cruzando uma série de músicas do imaginário português e apresenta-as em sequências vincadamente cómicas, como é o caso da música Uma Árvore, Um Amigo de Carlos Paião interpretada por Joel Branco (que interpreta o rei em fim de vida) onde se sublinha a preocupação com os incêndios que invadem o país e todos os problemas associados às alterações climáticas, sendo que é essa preocupação que está na origem da vontade de Alfredo ser bombeiro. A dada altura, o príncipe encarna mesmo Greta Thunberg e cita o seu famoso discurso na Conferência das Nações Unidas.
Outra das músicas presentes no filme é o fado de Amália Mané Chiné que ouvimos durante a cena em que as duas personagens principais se envolvem sexualmente. Sequência marcante, tanto pela dança que a câmara faz em redor dos corpos nus como pelo arrojo das representações e humor presente no diálogo. Apesar de neste contexto a música de Amália ganhar uma certa leveza e comicidade tendo em conta as particularidades da sequência, a letra tem tanto de cómico como de problemático. A juntar-se a estas, há ainda ctrl + C ctrl + V dos Ermo na virtuosa coreografia no quartel e um fado final interpretado por Paulo Bragança no funeral do rei.
Nas danças, na música, na aproximação à caricatura, na fuga ao verosímil nos cenários de 2069 e sob a fotografia de Rui Poças e a direção de arte de João Rui Guerra da Mata, Fogo-Fátuo oferece-nos cenas e diálogos com potencial para se inscreverem na história do cinema português, tornando-o um divertimento ao nível do mais engraçado que o cinema português nos vem dando desde João César Monteiro, Miguel Gomes ou Gabriel Abrantes. Ainda assim, e apesar de se louvar a tentativa de encontrar novas metragens e desconstruir formas, talvez seja inevitável sentir no filme uma certa fragilidade por não ser nem uma curta-metragem nem uma longa consistente e suficientemente densa, deixando a sensação que o filme tinha potencial narrativo para mais.
Tocando com ironia nos traumas da portugalidade, expondo a sexualidade e o erotismo sem tabus, o filme faz-nos olhar para temas decisivos da atualidade usando a comédia à maneira de Lubitsch: subtil e incisiva. Fogo-Fátuo leva-nos a desejar mais e a pedir que João Pedro Rodrigues volte rapidamente a presentear-nos com o seu cinema.
Ricardo Fangueiro
[Foto em destaque: Fogo-Fátuo, João Pedro Rodrigues © Terratreme Filmes, House On Fire, Filmes Fantasma]