HUNTING DAY/2020
um filme de Alberto Seixas
Hunting Day, de Alberto Seixas, conta a história de um homem errante que vive no campo e que, todos os sábados, vai à caça. Num desses sábados, encontra algo inesperado.
Filmado em apenas um dia em super8, na vila portuguesa de Celorico de Basto, este pequeno poema visual concede ao espectador uma atraente experiência sensorial.
Apoiado nas texturas dadas pelo grão da imagem e nos enquadramentos da câmara, Alberto Seixas celebra esta arte que é fazer cinema. A narrativa é simples, contudo é exaltada pelo realizador que lhe emprega as possibilidades que a ficção lhe proporciona. Ouvimos um homem que entendemos ser o narrador e simultaneamente a nossa personagem principal. Este homem, por sua vez, encontra e observa um outro homem, a criatura que é espiada pela câmara. Esta criatura, que ele leva para casa como um dos animais que caça, acaba por ela mesmo lhe “caçar” as galinhas. Entendemos todas estas reviravoltas e duplicidades sem vermos realmente a ação a acontecer. A câmara de Alberto Seixas relembra a câmara de Jonas Mekas, e isto parece induzir o espectador em erro, fazendo-o acreditar que aquilo que vê é uma captação do real. E não é isso que faz simultaneamente o cinema de ficção? Não é a sua função querer passar-se pelo real? Seixas explora muito bem aqui este carácter enganoso das narrativas de ficção, sendo a sua estética próxima do documental e a sua história cheia de pequenos truques que parecem passar despercebidos.
Inês Moreira
CINEMINHA NO BECO/2021
um filme de Renato Oliveira
Há filmes que falam de filmes, há pessoas em filmes que falam de filmes e há filmes como este Cineminha no Beco que fazem todas essas coisas. Gravado numa favela brasileira do Rio de Janeiro, com uma personagem principal nascida e criada no meio das adversidades socioeconómicas desse mundo periférico, o cinema é fundamental. A acessibilidade, a comunidade, ou o bairro são as palavras de ordem de uma história que documenta a criação de um cinema ambulante por esta favela do Rio. “Linderberg Cícero da Silva, nascido e criado na praia de Ramos” é o ciclista/projecionista que anda com o cinema às costas com o único propósito de exibir filmes para os mais novos e os seus pais. Sempre gratuitamente e com alguns apoios da cidade para comprar os materiais necessários à mostra dos filmes, Cineminha no Beco é também um retrato da parca acessibilidade que a cultura tem em comunidades marginalizadas e esquecidas.
João Reis
REDUCTION/2021
um filme de RÉKA ANNA SZAKÁLY
Uma garrafa de água vazia dá à costa num mundo pós-apocalíptico onde jovens e crianças andam à deriva entre montes de lixo e praias repletas de destroços. Logo no início do filme a nossa atenção é conduzida para uma figura humana com uns grandes olhos azuis a segurar outra garrafa, agora de vidro, partida no meio de uma areia cinzenta e suja. Com todos estes subtis apontamentos, que continuam ao longo do filme, Reduction é quase um ensaio ambiental e desde o início que somos absorvidos pela estranheza do local, onde não existem adultos, mas existe uma ilha distante como ponto de destino, uma qualquer utopia salvífica para o qual as crianças começam a perder a esperança.
Reduction é, no entanto, um filme misterioso, duas raparigas cruzam-se ao longo do filme para serem separadas por uma personagem estranha, entre o humano e o animal, reconfortadora, mas inquietante, que irremediavelmente as vai separar e deixar-nos a nós espectadores sem saber quem acabámos de encontrar, se a materialização de um trauma, se a criação de um novo. Se um homem, se um animal.
Num mundo sem esperança que traduz o sentimento desanimado de uma geração jovem que se vê incapaz perante o desastre climático vigente, estas personagens deambulam pelas praias, sofrem desgostos e traumas e perdem qualquer expectativa de fuga. Acabando, tal como esta personagem principal, sozinhas no meio do nada, sem qualquer absolvição.
João Reis
SELF DEVOURING/2020
um filme de Mahmood Sharifi Asl
Self Devouring apanha-nos desprevenidos desde o primeiro momento e só nos deixa respirar por uma vez, quando vemos uma criança no chão a brincar, tirando-nos o fôlego e ainda nem o título sabemos. É bom que guardemos esta lufada de ar pois só a poderemos soltar quando tudo já tiver acontecido, a nós e ao pai que julga ter deixado a sua filha engolir um saco de droga. Mas isso só o saberemos a meio caminho, acompanhando a paranoia de um traficante de droga sem compreendermos a gravidade da situação. Suspeitamos, no entanto, ainda na nossa primeira respiração, que algo horroroso irá acontecer, vendo um bebé com um golpe tremendo nas mãos. Tudo o que se segue é traçado pelo sangue, que mais do que das mãos da criança escorre das mãos do pai até ser um peso morto nos seus braços. E quando voltarmos a respirar, ficaremos ainda com um nó no estômago de tanto ar perdido, num filme em que nada aconteceu que não nos tenha feito questionar o que poderia ter acontecido.
Nuno Cintra
THE LAST FERRY FROM GRASS ISLAND/2019
um filme de LINHAN ZHANG
Se desde o início ficamos a saber que Grass Island é uma ilha de Hong Kong situada na fronteira com a China, não é inocentemente. À luz desta informação, tudo o que veremos tem o potencial de transformar noutra coisa. Todas as imagens tornam-se políticas e todos os diálogos comentários sobre a tensão entre estas duas nações. Mas deixemos esta discussão para outra altura. Afinal este também é outro filme, que de forma nenhuma depende desta informação.
É o som do mar que nos chega primeiro nesta viagem. É também este o som que nos isolará durante o próximo quarto de hora, despedindo-se de nós apenas quando voltarmos a esta imagem, em dueto com as cordas de uma pipa. Isola-nos numa ilha com um homem, a sua mãe idosa e uma visitante que veio para o matar. “O Mestre”, assim apelidado pela assassina, terá de aceitar o seu fim. Mas antes de ir despedir-se-á do que o prende àquela ilha, daquilo que nunca mudará e do que nunca voltará a ser o mesmo.
The Last Ferry from Grass Island é um adeus à teimosia dos que a este tempo não pertencem, um olhar sobre os velhos costumes e as mutações do mundo moderno.
Nuno Cintra
Nota: A folha de sala inclui textos de autores que não pertencem ao CINEblog IFILNOVA.