Ao quarto dia do festival, e diante os diversos exemplos oferecidos, talvez faça sentido sublinhar a ótima prestação do cinema marcada por uma certa alma feminina.
Não que seja merecedor de atenção especial, por si só, até porque a paridade entre géneros tem sido uma questão muito defendida pelos programadores e que se torna particularmente evidente este ano. Ainda assim, há um conjunto muito interessante de fitas com ligações diversas, como se unidos entre si por portas comunicantes. Talvez de uma forma muito particular entre Avec Amour et Acharnement, da francesa Claire Denis, e O Trio em Mi Bemol, da lusitana Rita Azevedo Gomes. Por sinal, dois dos melhores que vimos até agora.
Mas há outras ligações no feminino. Ursula Meier, com La Ligne, Robe of Gems, de Natalia López Gallardo. E ainda a iraniana Mitra Farahani À Vendredi, Robinson, na secção Encounters. Mas vamos por partes.
Claire Denis confere-nos uma encenação (quase teatral, mas muito luminosa) da aproximação de uma tempestade emocional entre o casal Sara (Juliette Binoche) e Jean (Vincent Lindon). Mesmo que sintamos uma semelhança com a relação viviada em Cenas da Vida Conjugal, de Bergman, entre Liv Ullman e Erland Josephson, isso não afecta a narrativa. Aliás, esse tipo de relação será até abordado (e assumido) aqui na sua dimensão de um certo cliché.
O filme principia com essa ligação plena de amor, proximidade e entendimento. Até que a dúvida se instala, sobretudo depois que o amigo e colega de Jean, François (Gregoire Colin), o ex- de Sara, se insinua a ela e faz reviver o passado íntimo de ambos.
Aliás, a própria Claire Denis aborda a questão dos “clichés sobre padrões de comportamento” na entrevista que acompanha o press release do filme. De certa forma para normalizar essa relação de um casal de meia idade, experiente e disponível para amar. Uma paz amorosa entretanto perturbada com a instalação de uma ligeira vibração de dúvida e o aproximar de um tsunami amoroso. Denis refere ainda outros clichés algures nessa “linha fina” ou “corda bamba” que envolve “uma ménage a trois e a mulher dividida e a sofrer entre dois homens”.
O mais fascinante é observar como ela dirige essa tensão. Quase como se tratasse de um verdadeiro thriller. De resto, sublinhado a tensão por uma inquietante banda sonora. Até atingir o tal tsunami. Naturalmente, é o trabalho de actores, de total entrega e imersão, que devolve os resultados que se vêem.
Recordar cenas da vida
Estão perfeitos, mas… ça va pas!, anuncia o realizador, a certa altura de O Trio em mi Bemol, o novo filme que Rita Azevedo Gomes mostra a Berlim, depois de A Portuguesa, há dois anos. Mas são filmes inteiramente diferentes. Do deslumbre visual ao deslumbre sensorial. Como este filme que vai sendo feito numa casa junto à praia de Moledo. Também com um casal (a portuguesa Rita Durão e o francês Pierre Léon). É tudo uma grande farsa, como diz entretanto. Pois é. É o cinema. Mas um cinema – o de Rita Azevedo Gomes -, onde nos sentimos bem e porque sabemos onde estamos. Rita parte da peça com o nome do filme e encenada por Éric Rohmer nos anos 60. A única que encenou. É o filme sobre essa peça que o realizador Jorge (Ado Arrieta) pretende realizar, mas que bem poderia personificar a própria Rita Azevedo Gomes.
É mesmo essa possibilidade que parece sobressair neste filme. Ou seja, o rigor pelo trabalho de mise-en-scène – com aqueles planos à Oliveira (como se sabe, um cineasta muito da sua latitude) combinado com o prazer da palavra, quase como flâneur – tão querido a Rohmer. Algo que acaba por combinar na perfeição com o seu lado feminino (mesmo que se coloque no corpo de um homem) e filmar, como num eterno ensaio, a conversa entre Adélia e Paul (Rita e Pierre) divorciados há muito, embora amigos que se encontraram algumas vezes no mesmo ano.
São conversas rohmereanas, em que o lado de ensaio se confunde com o cinema que se faz, quase como forma de vida. É esse lado de artífice em que se admitem mesmo pequenas falhas. Como na vida. Conversas em que se fala de Bach, Mozart ou Beethoven. Mas também de rock e de música clássico, como duas nuances entre o ambiente e a emoção, ou o amor e a tendresse (deixamos em francês, já que o filme em francês contém diálogos em português). Cada um com a sua natureza, antes de um momento sublime tocado pela emoção musical.
O cenário é sempre a casa perto da praia, em Moledo do Minho, que funciona também como personagem (como aliás o apartamento de Binoche e Lindon em Paris). No fundo, o filme oscila entre os diálogos dos dois (tal como em Denis) e, a espaços, o monólogo interior do realizador, ou a meditação em total descontração quando sentado numa cadeira na praia. Mesmo quando seja para dizer: “estava perfeito, mas vamos fazer tudo de novo”. Mas porquê?, diz ele. “Porque sim”. É o cinema.
Fala-se ainda de um guião perdido (o do filme que se está a fazer). Mas que já não interessa. Lá está, é o que se faz que interessa. Como o amor. Como que a dar a entender que é esse momento de cinema a nascer que ele quer fazer perdurar. Ou como aquela mágica (mítica!) e lenta panorâmica de 360º dentro da casa que nos envolve a nós quando Adélia diz que foi a uma livraria “à procura de uma frase num livro que a inspirasse” e se deixou levar “por uma música tocada no rádio que a emocionou”. O tal trio em mi bemol.
Avec Amour et Acharnement, de Claire Denis – ****
O trio em mi bemol, de Rita Azevedo Gomes – ****
Paulo Portugal