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Sobre o empoderamento intrépido de Márcia no novo filme By Flávio de Pedro Cabeleira

Pedro Cabeleira apresentou By Flávio na 72ª edição do Berlinale, tendo sido selecionado para a competição de curtas-metragens a decorrer no festival. Tivemos a oportunidade de conversar com o realizador que nos revelou que depois de Verão Danado (2017), e enquanto procurava financiamento para a próxima longa metragem, decidiu realizar esta curta para se manter activo durante esse hiato.

Para além disso, o projecto surgiu da vontade de trabalhar com Ana Vilaça, Márcia no filme, mãe solteira que tenta gerir as suas ambições sociais e os cuidados do filho, conseguindo, de uma forma ou outra, fazer tudo resultar. Diogo S. Figueira juntou-se à dupla – uma colaboração já habitual – e em conjunto escreveram o guião. Com base num momento que Diogo observara durante as férias, em que uma mãe era fotografada pelo filho na praia, os argumentistas desenvolveram a narrativa: “eu fiquei com essa imagem e a partir daí fomos construindo os personagens (…) (a história) tinha de envolver o mundo do hip-hop português atual, e também esta ideia de ser uma personagem de Torres Novas.” 

E assim foi descoberta Márcia, uma mulher sem dúvida forte e segura de si mesma, com a ânsia de acumular seguidores nas redes sociais, e por isso dedica-se avidamente às poses fotográficas, até estar satisfeita com o resultado – “só mais uma ou duas” ouvimo-la dizer em mais que uma situação. É Flávio (Rodrigo Manaia), o seu filho, que lhe tira fotos. Depois da sessão fotográfica, o passo seguinte da jovem mãe é editar o aspecto do seu corpo através de uma aplicação no telemóvel que naturaliza sempre as suas formas, por mais que estas se distanciam da realidade. Torna-se impossível notar que aquele corpo não é o dela. 

Os diferentes níveis de existência, material e virtual, interligam-se de forma natural ao longo do filme, permitindo-nos acompanhar as ações de Márcia no telemóvel. Cabeleira pretendia precisamente explorar a temática das redes sociais “de um ponto de vista formal. Interessava-me trabalhar esta ideia de como se representa um ecrã de telemóvel (no cinema).”

É através do Instagram que Márcia encontra o perfil de Da Reel Chullz (Tiago Costa), popular músico trapper, e é atraída pelo seu elevado número de seguidores. Inicia-se um jogo de sedução, com troca de mensagens e fotos, que culmina num encontro no centro comercial de Torres Novas, local bem conhecido pelo cineasta. Da Reel Chullz e Márcia conversam sobre a possibilidade de colaborarem num videoclipe, e o trapper apresenta o cenário que tinha em mente: planos de Márcia vestida com roupas justas e curtas, com cores vibrantes a combinar com os carros, e uma cena em que ele comeria sushi do corpo despido dela. Márcia recusa prontamente a proposta. Sobre isso, Cabeleira afirma: “eu não sinto que haja problemas de alguém expor o corpo, a minha crítica no fundo não é essa,” mas sim mostrar que há uma diferença entre uma mulher decidir como se quer mostrar ou ser orientada nesse sentido por um homem, e nesse último caso, “ela perde o controlo sobre a utilização da sua própria imagem. Mesmo que ela esteja obviamente influenciada pelas redes sociais e o que são as tendências, há uma diferença quando ela está no controlo. (…) O que trabalhamos com a personagem da Márcia foi (uma questão de) ela estar no domínio e nunca perder esse domínio sobre si.”

Cria-se um jogo de forças que culmina com a confirmação de uma masculinidade frágil que não suporta ser rejeitada, e a revelação da feminilidade de Márcia como uma que se empodera, precisamente a partir do centro das condutas sociais que a tentam oprimir. O corpo é dela e a imagem deste será dela também. 

Ana Vilaça representa esta ideia de forma límpida e confiante e a cinematografia, assegurada por Leonor Teles, é também um ponto de destaque do filme. Uma produção que seguramente vale a pena revisitar.  

Na conversa que teve lugar no recinto da Berlinale, Cabeleira deixou ainda algumas pistas para o projecto a que se tem vindo a dedicar: uma longa metragem passada no Entroncamento, de onde é originário, mas que não terá a ver “nem com comboios, nem com fenómenos”, afirmou, e que terá Ana Vilaça de novo como protagonista. Será uma exploração de personagens mais velhas que as dos seus anteriores filmes, acompanhando a idade do próprio Pedro Cabeleira. Serão adultas já sem grandes esperanças quanto ao seu futuro, personagens “perdidas que já dificilmente se vão encontrar”, conclui. Ficaremos a aguardar os seus próximos passos no cinema português. 

Vera Barquero

[Foto em destaque: By Flávio, Ana Vilaça © Primeira Idade, Kometa Films]