Um dos mais recentes filmes de João Mário Grilo, a par de Campo de Sangue, é Vieirarpad – documentário sobre Maria Helena Vieira da Silva e Arpard Szenes, nomes fundamentais na história da arte portuguesa. O casal, para além de partilhar a intimidade, partilhava a profissão – eram amantes tanto um do outro como da pintura, e é impossível que tal não transpareça em qualquer filme que sobre eles se faça. A virtude de Vieirarpad está em entrelaçar habilmente as diferentes dimensões das suas vidas, oferecendo-nos um retrato individual de cada um dos artistas, as suas diferentes personalidades e visões, e não se resumindo a tratá-los como um só. É certo que a sua união era notoriamente forte, genuína e, sobretudo, saudável, baseada no respeito e admiração mútuos. Diz-se no filme que essa é dinâmica rara entre artistas, que a tendência é para comportamentos excessivos e destrutivos, para paixões arrebatadoras que geram histórias documentais em nada reconfortantes como Vierarpad. Não será essa uma dinâmica rara de observar em qualquer grupo social? A estabilidade do vínculo de Vieira da Silva e Arpard surpreenderia qualquer pessoa. Cada um parecia ter encontrado no outro o descanso de um companheiro fiel, uma presença cúmplice que deseja crescimento em conjunto, mais do que exige retorno de carinho. O seu amor era ternurento assim: um dedicando a vida ao outro e os dois à pintura, influenciando-se mutuamente, incentivando-se sempre a criar, cada um na sua própria pesquisa.
Vieirarpad viaja pelas cidades por onde o casal passou, levando-nos às ruas por eles conhecidas de Paris, Rio de Janeiro, Lisboa e outras, enquanto nos lê a correspondência que trocaram. A matéria fundamental do filme está precisamente nas palavras que escreviam nos breves períodos em que estavam afastados. Partindo de Escrita Íntima, edição da Fundação Arpad Szenes – Vieira da Silva, onde se apresentam compiladas as cartas enviadas entre 1932 e 1961, o documentário cruza a sua cumplicidade com os acontecimentos da época que os afetaram pessoalmente – nomeadamente a 2ª Guerra Mundial que os forçou ao exílio no Brasil – e ainda com as suas obras plásticas. João Mário Grilo presenteia-nos com as pinturas dos artistas projetadas do tamanho do ecrã. Aumentadas ao pormenor, a sua riqueza iconográfica é evidenciada. Os dois eram não apenas talentosos, mas realmente empenhados e consistentes na sua dedicação à pintura, tendo deixado um corpo de trabalho admirável.
O documentário recorre também a sequências de imagens de Ma femme chamada Bicho, filme que o casal gravou em 1978 e no qual se dão a conhecer, um através do outro, como habitual. Rever interações suas quotidianas, guardadas para sempre nessas gravações, confirma-nos que Vieirarpad é um filme de fantasmas. Já a primeira cena nos mostrara a sua campa conjunta, remetendo antes de tudo para as suas mortes, e só depois para as suas vidas, que apenas o cinema consegue de alguma forma recuperar. Os depoimentos que o documentário reúne ajudam na construção do imaginário da existência desses seres. Maria Helena e Arpad aparecem-nos como fantasmas amorosos, felizes na simplicidade, em nada pequena, de se terem um ao outro e à sua arte. Vieirarpad é sem dúvida um retrato carinhoso destes artistas inseparáveis que se apelidavam de “bichinho” e que desenvolveram expressões próprias para demonstrar o afeto gigante que sentiam um pelo outro. Numa das cartas Vieira da Silva escreve: “Sempre que dou uma dentada em coisas boas penso em ti.” Será difícil terminar este filme sem uma sensação de encantamento perante as bonitas vidas que nos apresenta.
Vera Barquero
[Foto em destaque: VIEIRARPAD, de João Mário Grilo © Direitos Reservados]