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72ª Berlinale (2022) Berlinale Festivais de Cinema

Primeiras sessões de curtas do Berlinale

Começaram dia 12 de fevereiro as exibições de curtas-metragens na Berlinale. As sessões espalham-se por diversos locais da cidade de Berlim, como o Centro Cultural silent green e a Akademie der Künste, entre outros. A curadoria do programa está organizada segundo múltiplos motes, permitindo a descoberta de pontos de ligação entre projectos de autores e culturas muito distintas.

Na primeira sessão de curtas da competição, Berlinale Shorts I, sobressaiu a temática da linguagem e a ligação íntima que com ela se cria. Kicking the Clouds, do estadunidense Sky Hopinka, é um escavar das suas origens indígenas através do cinema. Tudo começa com uma gravação áudio que já data 50 anos da avó de Hopinka a aprender a língua Pechanga com a sua mãe. A partir daqui o realizador questiona a sua mãe acerca desta herança e oferece aos espectadores fragmentos de uma cultura que vai perdendo o sentido de pertença. Ouvimos as histórias que esta mulher conta, é a sua voz que nos mostra tudo – apenas em momentos fugazes lhe vemos a face. A empatia cria-se através das palavras recheadas de nostalgia que diz ao filho, e dos objectos que vai dispondo perante a câmara: pequenos emblemas coloridos que, contudo, contêm em si o enorme afecto neles guardado. O afecto por um modo de vida antigo que se dissolve e é consumido por narrativas dominantes; palavras cuja pronúncia se esquece; uma terra que tem de se abandonar.

Também se trata de afectos em Soum onde há um cruzamento cativante de documentário e performance. Três amigos, Inti, Jai e Pauline, vivem em França, mas as suas raízes não estão aí. Pertencendo a segundas gerações de famílias imigrantes, debatem essa experiência e procuram o seu lugar no mundo. Vindos do Brasil, Índia e Senegal, os jovens conversam com os pais ora em francês ora na língua respectiva ao seu país de origem. Aprendemos um pouco de cada cultura em cada casa, e notamos a vontade de não deixar morrer práticas com significados profundos, porém não partilhadas além dessas paredes. Formas de viver a espiritualidade estão muito presentes e um véu de mistério cobre tudo o que o grupo tanto quer entender, mas não consegue responder. É um privilégio observar as suas formas de expressão inventivas e curiosas, abertas ao mundo para o acolher, e para lhe dar uma reprimenda quando necessário.

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Kicking the Clouds © Sky Hopinka

Linguagem enquanto modo de falar e pensar, profundamente intricada com narrativas que através dela se constroem e que podem restringir uma expressão livre – tantas vezes o fazem. Como em Gong ji, exibido na seleção Kplus Short Films 3. O primeiro trabalho ficcional de Myo Aung, realizador nascido no Myanmar, trata de uma prática cultural opressiva. Uma menina de 12 anos, Hung-hsia, prestes a celebrar casamento a um jovem chinês a quem foi prometida. Ele está ausente no momento da cerimónia, é suposto ela viajar até ele mais tarde. A celebração ocorre com um galo no lugar simbólico dele, e a mãe da criança pede aos deuses que entendam a circunstância da substituição e validem o matrimónio. Hung-hsia está claramente descontente, aliás, o filme abre com a sua pergunta: “Como posso casar com alguém que não conheço?” Apesar disso, que poder tem ela para desafiar esta narrativa tão enraizada na sua cultura? Ela submete-se à tradição, é vestida a rigor e partilha a refeição de casamento com a mãe e outras mulheres da família que a felicitam por essa combinação que dará uma suposta vida boa à menina. Juntas à mesa, servem-se do galo que acabara de subir ao altar com Hung-hsia. Uma celebração que pouco tem de tom celebratório, um ritual cuja estranheza apenas é notada pela recém-casada. Myo Aung retrata a situação de forma silenciosa, o absurdo temático é interiorizado e ressalta a delicadeza dos pormenores e rimas visuais: o vestido vermelho vivo da menina é da mesma cor que o sangue despejado diretamente do pescoço do galo para uma pequena taça.

Gong ji, Hung Hsia Hsu, Lin Chi Hsu © Myo Aung

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Sangue é que nos permite destacar também Vlekkeloos da holandesa Emma Bradenhorst. Ruby, de 15 anos vive com a ansiedade de esconder a sua menstruação. O sentimento de vergonha em relação a esta característica biológica é provavelmente partilhada por todas as pessoas que menstruam. No caso de Ruby adiciona-se uma camada de dificuldades financeiras que a sua mãe está a tentar ultrapassar. A adolescente ressente-se de lhe pedir que compre produtos de higiene, para não adicionar despesas à conta da família. Começa assim a inventar uma série de artimanhas para sobreviver a esta necessidade fisiológica. Pede constantemente tampões a amigas e chega a roubar de um supermercado, para além de todas as violências físicas a que se submete ao tentar substituir esses produtos quando não os arranja. Ademais, o maior receio materializa-se: as suas calças mancham-se de sangue durante uma aula de educação física e toda a turma se ri dela quando repara. Visualizar este filme é ver representadas vivências muito particulares da menstruação. Emma Bradenhorst pretende abrir a conversa para os tabus em torno da pobreza menstrual e das suas consequências mentais. Todo o filme é uma forte experiência de ansiedade que nos coloca na pele de Rubi para viver com ela esse tormento que afeta, ainda atualmente, uma percentagem despropositada de pessoas.     

Ficam assim destacadas algumas das curtas selecionadas pelo Berlinale – entrecruzadas em diferentes aspectos. Cada projecto segue, contudo, o seu próprio caminho de expressão. Todos são autores para manter debaixo de olho. 

Vera Barquero

[Foto em destaque: Alicia Pinsen, Vlekkeloos, de Emma Branderhorst – ©IJswater Films]