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O trio em mi bemol — A linguística do amor

Um realizador, numa casa aparentemente isolada do mundo, filma Paul e Adéle, que estiveram numa relação e agora já não estão, mas continuam a encontrar-se esporadicamente para conversar sobre a vida, o amor e a música.

Ado Arrieta, Rita Durão, O trio em mi bemol – © Basilisco Filmes

O novo filme de Rita Azevedo Gomes é um filme que, com pouco, faz muito. Inspirado numa peça do realizador francês Éric Rohmer, que desviou o texto do processo criativo de Quatre aventures de Reinette et Mirabelle (1987), optando antes por transformar a obra numa peça de teatro.

Trio em mi bemol é um filme ensaio, não categoricamente, mas antes literalmente. Em primeiro lugar no conteúdo, em segundo lugar na forma. O filme, embora se esconda muito nos códigos formais, porventura vícios da linguagem, tem uma premissa simples: o realizador espanhol Adolfo Arrieta transforma a peça de teatro de Rohmer num filme. Este ouroboros cinematográfico serve enquanto camuflagem para a vivissecção que a realizadora tenta fazer ao processo cinematográfico. Esta exposição do funcionamento da forma garante uma maior fluidez na narrativa, que vagueia entre planos soltos, ensaios, takes, planos apertados e abertos, longos ou mais curtos. O estudo da forma tem que passar, naturalmente, por um distanciamento, a meta-narrativa serve esse propósito. 

A narrativa estrutura-se, assim, enquanto caso de estudo, dividindo-se em várias secções que estudam e dissecam a continuidade de uma história descontínua, através da repetição, da reformulação e do detalhe. A premissa é simples, assim é sempre nos casos de estudo — um homem e uma mulher, amigos com uma relação íntima anterior ao período do filme, encontram-se algumas vezes para conversarem, maior parte das vezes sobre o amor ou a música. Com efeito, não há nem amor, nem música neste filme, há um híbrido, uma sensação físico-espiritual de suspensão. Não há, neste duo, amor sem música/música sem amor, os dois transformam-se, através da mútua contaminação, numa espécie de estado puro de sensação. Ideologia defendida por Paul desde o início do filme. É através deste método de análise que o ênfase colocado no filme no agradecimento pelo presente, o disco Trio em mi bemol de Mozart, que compreendemos que o gesto de agradecimento, da obra que os une durante o filme, é na verdade uma aceitação. Paul confessa no filme que foi a divergência de gosto musical que fez com que o par se separasse inicialmente. 

Esta elaboração complicada sobre um agradecimento de um presente é no filme sintetizada em apenas uma palavra, a palavra “frase” — Paul quer que Adéle diga uma frase específica de modo espontâneo. O filme cria assim uma linguagem própria, codificada e apenas partilhada com os espectadores. A utilização deste e de outros códigos, nas conversas do filme, dispersas no tempo mas montadas em sequência, fundem-se numa só. Uma única conversa que atravessa o filme, do mesmo modo que uma  única relação atravessa o filme, apesar das divagações amorosas em que Adéle vai tropeçando. Esta evolução da linguagem, de uma intimidade, são os códigos formadores de todas as relações — pilares inconscientes de uma qualquer relação. 

A linguagem tem a função de aproximação de realidades, quer isto dizer, de garantir o mínimo em comum entre dois seres para que uma informação seja transmitida do modo mais eficaz entre os dois. É sobre isso que nos fala o filme, sobre o amor nos detalhes, na linguagem que se desenvolve com a aproximação, neste caso específico com a reaproximação, de duas pessoas. Os códigos não são mais que uma tentativa de singularização de um plural — o modo mais eficaz  de comunicação entre dois seres, isto é, pensar no mesmo tão rápido quanto possível. O filme é maioritariamente diálogo e é por isso que a beleza se esconde nos interstícios, na suspensão, entre ou dentro das palavras. 

Amar é conhecer o outro quase tão bem como nós próprios, todos os cantos e recantos, um sinal com uma forma engraçada num sítio escondido, os olhos inchados e o cabelo despenteado pela manhã, naturalmente acompanhado pelo mau humor que só desaparece depois do café e da festa no gato. O amor é saber sem pensar e, na linguagem, o amor é a mesma coisa, saber sem pensar, atribuir novos significados às palavras, tornar a linguagem de um na linguagem do outro. Amar é quando duas linguagens se aproximam tanto que deixam de ser distinguíveis. 

Diogo Albarran

[Foto em destaque: Pierre Léon, Rita Durão, O trio em mi bemol – © Basilisco Filme]