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Vortex e a dualidade daqueles que esperam a morte

Depois de títulos como Irreversível (2002), Enter the Void (2009), Love (2015) e Clímax (2018), o público de Gaspar Noé já espera tudo dos seus filmes. Do sexo explícito à violência, a sua filmografia conta com obras exaustivas e pesadas. Em Vortex (2021), o seu último filme, há uma atitude quase de anulação destes elementos chocantes para dar lugar a algo ainda mais violento e devastador.

Protagonizado pelo realizador Dario Argento e pela atriz Françoise Lebrun, que reconhecemos de La Maman et La Putain (1973), este drama franco-belga-monegasco narra a história de um casal nos últimos momentos da sua vida. Uma história sobre o tempo e sobre a passagem do tempo, e como esta pode ser encarada por esta mulher e por este homem. Gaspar Noé recorre ao split screen, praticamente do início ao fim do filme, e aos planos de sequência demorados e silenciosos como se estivesse ele mesmo a ilustrar esta passagem do tempo e a sua dualidade. Dualidade que fica muito evidente neste filme que parece quase dois. 

Do lado direito, vemos Dario Argento, por vezes a ler um livro ou a ver um filme, ou a escrever ou a falar ao telefone com uma mulher chamada Claire por quem diz estar apaixonado. Do lado esquerdo, vemos Françoise Lebrun que vagueia tanto pelo apartamento dos dois como pelas ruas perto de casa, como por uma mercearia, sem rumo ou sem saber o que procura. Os dois quadros do filme são quase opostos, num deles há uma espécie de cultivação da cultura e da memória, e no outro uma sensação de deriva de alguém que luta contra a doença de Alzheimer. Este recurso ao split screen é muito eficaz no que toca a transmitir-nos a noção de oposição e dualidade de perspetivas de quem encara os últimos momentos antes da morte, aquele pedaço de vida antes de deixar de haver vida. Cuidador versus aquele que necessita de cuidado estão aqui em contacto, mas nunca juntos. Esta ideia de solidão e de estar junto sem estar verdadeiramente junto é também muito bem conseguida através do split screen. 

As duas personagens principais, excetuando nos planos iniciais, não estão verdadeiramente juntas ao longo de todo o filme. Notamos, contudo, uma tentativa de se fundirem, por vezes, de um cruzamento dos dois, o que resulta em extensões estranhas dos membros, colocando esta tentativa no plano quase da fantasia. No entanto, o toque não é completamente inexistente; ele existe, e nem sempre os papéis (cuidador/aquele que necessita de cuidado) se mantêm fixos. Contudo, no final, não resta dúvida de que estas personagens já não pertencem a um mesmo plano. A forma como percepcionam os últimos momentos das suas vidas é drasticamente diferente, e parece haver uma dificuldade de compreensão mútua: ela pensa que ele é um louco que a persegue e ele refugia-se no seu livro para não ter que lidar com ela e poder fantasiar com a sua Claire. O que em tempos foi um grande amor é agora, apesar da permanência do carinho e do cuidado, algo distante e indefinido.

O filme, e esta é talvez uma das suas maiores qualidades, não pretende esconder ou aperfeiçoar esta relação, mas sim trazê-la nua e crua. O amor não é um sentimento que permanece constante. Ele apresenta variações: ele evolui, retrocede e metamorfoseia-se. São estas imperfeições que fazem com que seja um sentimento tão forte e bonito. Dario ama Françoise. Françoise ama Dario. Todavia, a vida não se resume a isto: existem circunstâncias, existem outras pessoas, e existem oscilações. E existe, ainda, a perspetiva de cada um, e a forma como cada um sente e age conforme aquilo que sente. 

Vortex, de Gaspar Noé – © Rectangle Productions e Wild Bunch International 

Vortex é um filme que comunica muito através da linguagem plástica e das escolhas estéticas do realizador. A ideia de não pertença/confusão que a personagem feminina parece sentir do início até ao fim do filme é representada, ainda, através dos planos mais aproximados, que apesar de serem mais notórios nesta, também estão presentes do lado masculino. A câmara filma estas personagens muito perto e, consequentemente, apaga o ambiente que as rodeia, contribuindo para uma certa desorientação do próprio espectador que deixa de ter acesso a toda a informação. Esta claustrofobia do plano intensifica a desorientação da personagem feminina e a preocupação da personagem masculina, e revela as dificuldades da velhice e da antecipação da morte.

Pouco tempo depois do filme começar, ouvimos “Mon Amie La Rose”, pela voz doce de Françoise Hardy. Esta canção sobre a mortalidade das flores rima com o tema principal do filme: a morte. E rima, ainda, com a varanda florida do casal. As flores que vemos sobre a varanda terão o mesmo destino da rosa da música que Françoise Hardy canta, e funcionam ainda como metáfora para Dario e Françoise, e para nós espectadores que partilhamos o mesmo destino inevitável. A morte é o vortex deste filme. Um destino inevitável. Um destino imperfeito, tal como a vida.

Vortex, de Gaspar Noé – © Rectangle Productions e Wild Bunch International 

Gaspar Noé trouxe-nos o seu filme mais introspectivo até agora. Um filme que tem um tom quase documental e que parece tocar no género homemade pela forma e pelo ritmo com que é filmado. “La vie est un rêve, n’est-ce pas?/ Oui, un rêve dans un rêve.” (“A vida é um sonho, não é?/ Sim, um sonho dentro de um sonho.”), o filme inicia com este diálogo e faz uso dele para desconstruir algumas das suas ideias principais. É esta referência que estabelece a ponte para o tema do cinema e para o livro que o protagonista masculino escreve: sobre sonhos e cinema. Dario afirma que estar dentro de uma sala de cinema é em si um sonho, é como entrar no mundo dos sonhos. Noé parece alertar aqui para a linha ténue entre realidade e ficção, naquele que é o seu jeito de fazer cinema falar sobre cinema, e colocar cinema no plano do real assim como no plano dos sonhos. 

A bela sequência de fotografias que fecha o filme parece contribuir também para essa divagação: o deambular entre a realidade e a ficção, a vida e o sonho, o cinema e a vida. Vortex perturba até o espectador menos sensível, e é daqueles filmes que fica connosco durante muito, muito tempo. 

Vortex, de Gaspar Noé – © Rectangle Productions e Wild Bunch International

Inês Moreira

[Foto em destaque: Vortex, de Gaspar Noé – © Rectangle Productions e Wild Bunch International]

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