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Trio em mi bemol de Rita Azevedo Gomes – A coreografia do reencontro

Uma peça musical de Mozart, uma peça de teatro de Éric Rohmer e um filme de Rita Azevedo Gomes. Trio em mi bemol, o título que reúne as formas da distância de sensivelmente 250 anos, completa este tríptico, acrescentando-lhe o cinema como terceiro movimento.

Adaptado fielmente da peça de Éric Rohmer, a única escrita pelo realizador, é no ritmo e na tonalidade que o filme de Rita Azevedo Gomes se aproxima de Mozart, um allegretto que define a cadência do andamento vivo de Paulo e Adélia, ensaio de uma coreografia comedida e compassada do reencontro.

Trio em mi bemol já não se trata tanto de uma adaptação da peça de Rohmer como de um filme sobre o gesto de filmar ele próprio, cujas possibilidades de concretização desapareceram durante a pandemia.

Numa casa minhota à beira-mar, Adélia (Rita Durão) e Paul (Pierre Léon), antigos amantes, reencontram-se para falar de amor, de amores e de ternura de amar. Esta é a história de Éric Rohmer, interrompida, para nossa surpresa, por um contracampo que desvela um plateau de um filme dirigido por nem mais nem menos que o realizador espanhol Adolfo Arrieta. Tudo até aqui era prelúdio para dar-se início ao filme e à revelação do cinema ele próprio, através da mise en abyme anunciada por aquela que parece ser a assistente de realização – “É tudo uma grande farsa.”. 

A partir deste momento, Trio em mi bemol vai além da adaptação da peça de Rohmer e torna-se uma ficcionalização de si próprio, isto é, uma ficcionalização do processo de transpor para o cinema a ficção de Rohmer, constituindo-se, deste modo, como gesto fílmico, cujo propósito não é senão o de mostrar-se a si próprio.

Ado Arrieta, Rita Durão, O trio em mi bemol de Rita Azevedo Gomes © Basilisco FilmesUma imagem com pedra

Descrição gerada automaticamente

Por entre ensaios, intervalos e filmagens, desenha-se, quer seja no interior ou exterior da casa, uma perfeita harmonia em torno daquele cenário idílico, onde Paulo e Adélia regressam ao amor que sentiam um pelo outro. Tal como na peça de Rohmer, este regresso só é possível através da peça Kegelstatt Trio de Mozart. E o que significa só ser possível através da peça de Mozart? Que não se deve às conversas, um tanto e forçosamente pedantes, o reflorescer desse amor, mas sim à música. 

Nesta farsa, tão verdadeira quanto possível, constitui-se o cinema de Rita Azevedo Gomes, uma produção de contradições que, como a própria afirma, não pode senão ser acompanhada de uma consciência e posição ambíguas em relação à realidade, ela própria ambígua na sua natureza. Não obstante a presença no filme dessa contradição fundamental do cinema, que é a própria essência do cinema, o filme e o filme dentro do filme de Jorge (Adolfo Arrieta) justapõem-se e retomam a unidade da sequência inicial, que impossibilitava a distinção entre um e outro. A verdadeira e única contradição do filme é querer-se contraditório quando tudo nele está “demasiado perfeito”, para fazer nossa a crítica de Jorge ao filme dentro do filme. Se assim não fosse, talvez Trio em mi bemol fosse, a par de Frágil como o mundo, um dos melhores trabalhos da realizadora portuguesa.

Cátia Rodrigues

[Foto em destaque: Pierre Léon, Rita Durão, O trio em mi bemol de Rita Azevedo Gomes © Basilisco Filmes]