Com António Costa na audiência, quase directo da Assembleia após o debate do orçamento na generalidade, viveu-se no cinema S. Jorge um momento de total liberdade (será cinema libertino?), com a apresentação de Um Filme em Forma de Assim. Mas atenção, Botelho vai ainda apresentar no Indie O Jovem Cunhal.
Por favor, Madame, tire as patas,
Por favor, as patas do seu cão
De cima da mesa, que a gerência
Agradece.
(Alexandre O’Neill, in Meditação na Pastelaria)
Em noite de festa e liberdade, o filme de Botelho previu a presença do Primeiro Ministro na plateia e ainda lhe mandou um piropo, quando a certa altura se lê num grafito “Ele não merece – mas vota PS”. É um detalhe, mas não deixa de ser um gesto surrealista que combina bem com o estilo mordaz que inunda a deriva surreal de Alexandre O’Neill, aqui com adaptação de Maria Antónia Oliveira, neste regresso ao poeta depois de lhe pedir emprestado o título para o seu filme Um Adeus Português, de 1986.
Foi um filme feito em total liberdade, garantiu João Botelho antes do início, com o palco inundado com a sua equipa técnica. O tal ‘divertimento em tempo de pandemia’. Agradecemos, por isso, as condicionantes que juntaram a trupe de Botelho e do produtor Alexandre Oliveira num hangar (que já usaram outras vezes) onde Lisboa acontece pela virtude do cinema. Pois percebe-se que foi aí, com o condicionamento de meios, que o autor se concentrou na essência (das palavras de O’Neill) para deixar que o cinema acontecesse. Algo que permite um jogo de câmara sinuoso, deleitado em longuíssimos planos sequência que nos permitem (tentar) compreender o tremendo trabalho dos actores para esses números de uma meticulosa articulação de mise-en-scène que convida o teatro e o musical.
É nessa forma que nos escapa – vá, uma forma ‘assim’ – que destapa o ‘fazer’, o crescimento do cinema. O tal cadáver esquisito. O tal filme libertário (ou libertino) com uma forma assim, digamos… Coiso.
Tremendos os actores. Alguns com apenas uma sequência ou uma cena. Temos de dizer os seus nomes. Desde logo, Pedro Lacerda, como Alexandre, o poeta, mas também Inês Castel-Branco, Cláudio da Silva, Crista Alfaiate, Luís Lima Barreto, Rita Blanco, Dinarte Branco. E todos.
Antes fora a abertura. Sempre em Português. E como foi bom ver a sala do S. Jorge cheia e aplaudir. Muito. E foi tão bom ver e rever pessoas já sem máscara e perceber como tudo isto nos retira de um outro normal.
A Mafalda Melo e o Carlos Ramos, da direção do Indie (e não também o Miguel Valverde que estava de baixa com covid) saudaram este regresso às salas.
E logo com duas cópias digitais restauradas escolhidas para a abertura do festival: Albufeira, uma curta destinada a promover o Algarve, filmada nos anos 60 por António de Macedo e Zéfiro, um outro filme promocional – desta vez, uma docuficção patrocinada por Lisboa Capital da Cultura 1994, assinado por José Álvaro Morais. Além do facto de serem duas encomendas, aos dois filmes une-se a ideia do mar e do rio, bem como fazerem parte do programa FILMar, promovido pela Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, ao abrigo do seu plano de digitalização e disseminação do património fílmico nacional.
Esta escolha torna-se ainda mais acertada para a abertura do Indie, por permitir evocar até os corvos, os verdadeiros ícones do festival.
Paulo Portugal
[Foto em destaque: Um Filme em Forma de Assim, de João Botelho ©IndieLisboa]