Quem agarra na Mão da Glória, revestida de gesso, e disser “talk to me”, entra em comunicação com o mundo dos espíritos em purgatório. Se após o primeiro contacto disserem “I let you in”, são possuídos. Se deixarem passar 90 segundos sem quebrar a possessão, o espírito tem carte blanche para usar o seu corpo eternamente. Num pequeno subúrbio, algures na Austrália, um grupo de adolescentes começa a praticar estes rituais como um jogo de festa: não pelo efeito narcótico de algo como os Choking Games dos anos 2000, mas como um auto-posicionamento em perigo consciente. Claro que isto vem com a vantagem acrescida de serem enviados para um inconsciente estado performático que podem filmar (e partilhar). Jackass demoníaco que abona a favor do seu capital social.
A protagonista, Mia (Sophie Wilde), é uma adolescente que perdeu a mãe recentemente. O seu envolvimento no jogo começa como uma procura desesperada por aprovação, mas muito rapidamente se torna numa perversa terapia da sua psique danificada pela morte na família. Estes problemas levam-na a pôr a vida de amigos e familiares em risco.
Um dos pontos altos do filme é a sua captura de um momento específico da adolescência. A linha mais ténue que qualquer cineasta tem de conseguir dominar ao realizar um filme focado nesta faixa etária, é conseguir mostrar o lado constrangedor dos modos de agir e pensar específicos à adolescência, sem o espetador ficar desconfortável face ao filme em si (ao invés das personagens que o habitam).
O filme é bastante gráfico, mas o mais impressionante é a forma como, acima de ser assustador e violento, é triste. Talk to Me atinge, de forma muito genuína, deprimente e comovente, algo que se sobrepõe aos momentos extremos de violência gráfica, montagem frenética e atitudes corrosivas. Assim sucede a atingir um pico de mal-estar emocional, não necessariamente igual ao do medo (mas que com este é constantemente conjugado), presente em filmes como Lake Mungo.Em último lugar, é importante realçar que o filme consegue levar-se a extremos, sem cair num pessimismo ou crueldade niilista, que, mais que ofensiva, é aborrecida. O espetador é mergulhado num mundo perturbador e violento (um grande foco na crueldade infantil que recentemente era vista como démodé, mas agora volta em momentos como a orgia de sangue da alma penada de Riley a ser torturada numa Sodoma similar ao terceiro ato de Society do Brian Yuzna). Mas mesmo assim, nos seus pontos mais agoniantes e aterradores, a sua base acaba sempre por ter as suas vigas fundacionais numa empatia forte e uma paixão grande pelos adolescentes em sarilhos.
O díptico ambicioso de João Canijo foi um dos objectos que mais curiosidade suscitou, à partida para a competição oficial da Berlinale. Mal Viver é, de facto, um filme imponente e violento, difícil de suportar, que nos faz mergulhar na sofreguidão intensíssima desta família. Quando voltamos à tona, falta-nos o ar.
É conhecido o interesse de Canijo pelo trabalho prolongado com os actores. O realizador tem um método muito característico de composição da história e construção das personagens junto das actrizes, que participam activamente no processo de escrita e preparação do filme. A profundidade desse método fá-las viver as cenas com uma energia feroz.
O início de Mal Viver mostra-nos Piedade (Anabela Moreira) deitada junto à piscina com a sua cadela, Alma, ao colo. Na piscina e na companhia de Alma, Piedade encontra o conforto necessário para conseguir suportar o estado depressivo em que se encontra mergulhada. Contudo, o regresso inesperado da sua filha Salomé (Madalena Almeida) vem abalar definitivamente essa condição. Sara (Rita Blanco) é a matriarca da família que tenta gerir o hotel ao mesmo tempo que a tensão familiar.
O realizador é hábil no jogo do campo, contra-campo e fora-de-campo – transformando a obra num ensaio sobre o acto de enquadrar, de escolher o que se mostra e o que não se mostra. Isso está, obviamente, presente na própria proposta de fazer dois filmes no mesmo intervalo espácio-temporal, mas acompanhando diferentes personagens. É como se, neste caso, houvesse mais do que um sítio em que a câmara pudesse estar, e isso dá origem aos dois pontos de vista – Mal Viver, que segue as donas do hotel; e Viver Mal, que nos mostra os hóspedes desse mesmo hotel.
Não há dúvida que Canijo domina a linguagem do cinema narrativo e que se tornou um mestre do seu cinema. Cada centímetro é trabalhado com minúcia e isso nota-se. Mal Viver é fabulosamente envolvente ao fazer-nos acompanhar de perto o drama familiar daquelas mulheres. Nos encontros e no fora-de-campo, vamos desvendando as histórias e as personagens de Viver Mal. O facto do filme ter sido rodado num hotel durante o período de confinamento possibilitou um controlo total que o torna fechado, claustrofóbico, e onde as personagens sufocam na angústia e no desespero. No entanto, esse controlo teatral também afasta o espectador de uma relação mais emocional com o filme.
As constantes conversas cruzadas, que já fazem parte do cinema de João Canijo (algo que em Sangue do Meu Sangue resulta muito bem), criam em Mal Viver alguns momentos absurdos, principalmente nas cenas em que as responsáveis do hotel atendem os clientes à mesa, durante o jantar. Na altura de apresentar as suas sugestões do que têm no menu, as empregadas de mesa falam por cima das conversas dos clientes distraídos. Completamente ignoradas por eles, continuam a falar de forma irreflectida para o ar. Esse cruzamento de vozes é embaraçoso e nada acrescenta ao filme.
Sôfrego e tocante, o filme deixa-nos exaustos pela experiência poderosa que nos provoca, mas o resultado não é totalmente convincente. O seu lado demasiado cerimonioso e presumido afasta-nos do lado humano das personagens, deixando-nos com a secura das suas almas perdidas pelo hotel.
As luzes apagam-se e a sala de cinema é submetida ao anúncio de 2017 da Pepsi com a Kendall Jenner, apresentado na sua forma integral. Curta-metragem publicitária que causou controvérsia mundial pela sua atitude leve e superficial face a violência policial e manifestos do movimento Black Lives Matter: dentro deste mundo tudo é resolvido com uma super modelo bilionária a entregar uma lata de Pepsi a um polícia.
Soda Jerk, o coletivo artístico constituído pelos irmãos Dan e Dominique Angeloro, fez uma sala inteira de críticos na Berlinale ver o Pepsi: Live for Now, numa qualidade gloriosa de 480p. Era impossível entender se a resposta era choque, ofensa, ou admiração, mas a única resposta que emanava era um coro de pequenas e descoordenadas explosões de risos pontuais que se tentavam esconder e abafar.
Hello Dankness é uma obra experimental constituída unicamente de centenas de clips pré-existentes, reutilizados e reapropriados com engenho de forma criar um retrato dos Estados Unidos pós-eleição presidencial de 2016. O filme não se limita a ser um clipshow, que reconstitui um ambiente ou sensação (como se especializam na Everything is Terrible, ou outros adjacentes artistas de vídeo), esta obra tem ambições narrativas. Começa por pegar em filmes focados em paranoia nos subúrbios (desde The Burbs de Joe Dante a Serial Mom, de John Waters) e a contrapô-los em montagem alternada e direta, de forma a criar um só universo onde todas estas personagens se encontram em convívio.
O material usado não se segrega a um género. Começa como uma manipulação de montagem e imagem, de forma a criar um thriller de conspiração jocoso sobre o país dividido antes, durante e pós-eleição (remetendo constantemente ao conceito tão falado nessa época da “sinistra e ameaçadora silent majority”). Ao longo da sua progressão, entra num hyperdrive aceleracionista: filmes, séries de televisão, anúncios, vídeos virais e memes começam a partilhar o suporte com igualdade de importância (desde o aparecimento de Dasha Nekrasova, uma figura pública de nicho que simboliza perfeitamente esta época, a cortes de campo/contra-campo nos quais é insinuado que o Fantasma da Ópera esteve envolvido no russiagate).
As referências começam a desdobrar-se em caminhos cada vez mais rebuscados, extremos e numerosos. A manipulação do material eventualmente sai da montagem e incorpora técnicas cada vez mais bizarras de manipulação de som e da própria imagem dentro do plano. A velocidade é tão rápida e o conteúdo tão absurdo, que se torna impossível assimilar todos os seus momentos e referências.
O espetador, na sua cadeira, deixa-se levar por uma torrente interminável de referências, sendo obrigado a consumir milhões de estilhaços do vidro da realidade que se partiu. Ele é deixado, com níveis iguais de horror e humor, a tentar (com o auxílio da montagem dos cineastas) colar os pedaços numa só peça que talvez se aproxime de uma verdade pura, há tanto tempo já perdida.
De Lila Avilés, realizadora de La Camarista, filme que representou o México na corrida aos Óscares para Melhor Filme Internacional em 2020, chega-nos Tótem, drama familiar cujo burburinho o coloca no grupo de favoritos a receber Urso de Ouro na 73.ª Berlinale.
Passado ao longo de um dia preenchido por preparativos de uma festa de aniversário, importante por, provavelmente, vir a ser a última do infermo Tonas (Mateo García Elizondo), Tótem toma como ponto de partida Sol (Naíma Sentíes), sua filha. Num ritual comum entre mãe e filha, em que a bem-sucedida travessia da ponte com a respiração presa equivale a um desejo realizado, é-nos apresentado o panorama: “pedi que o pai não morra“.
Sol é deixada em casa da família do pai, um casarão cheio de vida. Por todo o lado pairam plantas e animais das mais variadas espécies, desde caracóis a papagaios, mas também pinturas e fotografias, estabelecendo-a como uma casa repleta de história. Enquanto as tias Nuri (Monserrat Marañon) e Alejandra (Marisol Gasé) se apressam pela casa em limpezas e cozinhados, Sol ronda a casa em passinhos de lã, observando as diferentes dinâmicas enquanto não lhe é permitida a visita que tanto anseia ao quarto do pai.
Através de um trabalho de câmara intrinsecamente ligado às sensações, habitamos demoradamente nas expressões de Sol, por onde espreitamos o seu mundo interior. Com uma sensibilidade imensa, contraposta pela franqueza infantil da prima mais nova Esther, Sol vai-se soterrando pelos cantos mais íntimos da casa. “Quando é que o mundo vai acabar?” pergunta ao motor de busca do telemóvel do avô. Ainda nos restam milhões de anos, responde-lhe o software. A dúvida existencial é imensa, ainda mais através dos olhos de criança, mas a pergunta não é naïve. Contrapõe-se o fim do mundo ao fim do pai – um tão longínquo, o outro tão iminente.
Mesmo com as conversas focadas em Tonas, é no grupo de mulheres que lideram a casa que o filme se debruça. A relação quezilenta entre as irmãs Nuri e Alejandra, que acompanham de perto a obliteração causada pelo cancro do irmão, é simultaneamente carregada de tensão e de carinho constrangido. A relação entre mães e filhos é desenvolvida com delicadeza, num retrato provável da afeição que obriga ao walking on eggshells em volta de temas complicados que, todavia, Sol observa com atenção redobrada.
A cinematografia é quente e abafada, espelhando a casa. Envolta na penumbra da memória, a câmara acompanha a fugidia Sol. A exigência de arejar é sublinhada pelo formato 4:3, que delimita a família numerosa em planos apertados e frenéticos e enfatiza a doença de Tonas numa aproximação aterradora à vulnerabilidade da sua pele nua. Lentamente, o foco é deslocado entre os membros da família, instalando-se enquanto voyeur, um papel que Sol frequentemente encarna no meio do alvoroço.
As curandices e remédios caseiros estão, desde o princípio, cravados em Tótem. Num discorrer que privilegia a espiritualidade acima da religião, Ale contrata uma espírita para livrar a casa de más vibrações. Depois de queimar sálvia e eructar, pronuncia a casa livre de espíritos e extorque três mil pesos à crédula, que de tudo faz para estender o curto tempo do irmão – exceto pagar à enfermeira que o acompanha, a quem deve há duas semanas. Noutro momento, a família junta-se (tirando o pai cético e carrancudo) em círculo, de “corpo aberto” numa terapia quântica, na tentativa de alinhar os chacras para que Tonas consiga participar na festa. Com um suspiro de alívio, constatamos que a superstição resulta.
O filme culmina numa comunhão fraternal, onde família e amigos de longa data discursam num tom que aproxima a despedida da celebração. O que Lila Avilés descreve como “atores como seres alquímicos” é elevado. Há uma autenticidade tão simbólica nos corpos e palavras dos modelos que torna impossível não criar uma profunda empatia. Ainda assim, Tótem vence ao não se deixar levar num sentimentalismo banal.
O filme de Lila Avilés é preenchido por símbolos, pelos tótems que o designam. Os animais povoam os cenários: Sol tem um conhecimento enciclopédico sobre eles, homenageado no emocionante quadro – uma espécie de Arca de Noé, onde os favoritos da filha puderam embarcar – que Tonas pinta e lhe oferece. Um pássaro negro, confundível com um corvo, ronda os telhados da casa, como que à espera da morte.
Há, todavia, tanto que remete à esperança. O gafanhoto que, no Feng Shui, é o emblema da imortalidade, sobe pelo dedo de Tonas. O presente do pai, um bonsai tratado por ele há oito anos, rima com paciência e boaventura. No final, entrelaçam-se no microcosmos de fraternidade tão marcado nesta família que, apesar de todas as contrariedades, faz de tudo para esticar o tempo.
No dia em que Steven Spielberg apareceu na passadeira vermelha da Berlinale Palast, para receber o Urso honorário e apresentar ao público do festival Os Fabelman (o clássico autobiográfico que conhecemos no natal passado em Portugal), dois outros gigantes (mas do cinema moderno) deram o ar da sua graça neste festival de cinema. Não poderiam ser mais diferentes e, contudo, tão semelhantes no modo como radicalmente se comprometem com a sua ética e mundividência: são eles Philippe Garrel e James Benning.
Garrel surgiu hoje de manhã na conferência de imprensa acompanhado pelas duas filhas, Esther e Lena, mas sentimos falta de mais alguém, aquele que se chama Louis, justamente. Em Le Grand Chariot, os três descendentes do autor de La Cicatrice Intérieure (1972) compõem o espelho de uma outra família que trabalha para a companhia de teatro de marionetas do patriarca (interpretado por Aurélien Recoing). Tudo vai bem enquanto os vivos fazem companhia uns aos outros, mas a morte aparece e, com ela, a coragem para sonhar com outros destinos para uma vida artística que, até então, teria sido tomada como garantida.
Ao lado de Tótem (Lila Avilés), este é um dos melhores filmes da competição oficial. Visão serena e sedutora sobre as transformações nas vidas destes amigos, a delicadeza de Garrel deve à sua recusa em aceitar que triângulos ou quadrados de amor tenham de ser necessariamente bizarros ou instigadores de telenovela ou tragédia. Há quem fique irremediavelmente sozinho porque, possuído pelo egoísmo ou por um demónio artístico, estragou o amor… Mas, para lá das separações e despedidas, de todos os afetos e vontade de amar, a grande força de cada personagem advém das suas inspiradoras independência e vontade de compreender o outro. Em Le Grand Chariot, a verdadeira resistência é saber como reinventar a vida.
Na secção Fórum, onde já encontrámos Susana Nobre (Cidade Rabat), James Benning olha – demoradamente (não falamos de um Spielberg) – para aquilo que do passado se presentifica. Em Allensworth, o cineasta e artista visual filmou, durante os 12 meses do ano passado, 12 planos fixos, atravessando as estações, o tempo e as memórias da primeira cidade californiana governada por afroamericanos. Com uma energia fotográfica, James Benning percorre, metodicamente e com distância, a cidade fantasma, dando-no-la a conhecer a partir dos seus pitorescos edifícios, elementos naturais, sons e cores. O artista permite-se ser lírico quando ouvimos Nina Simone (Blackbird), Huddie Ledbetter (In the Pines) ou uma jovem rapariga que nos lê a poesia de Lucille Clifton. Mas, em Allensworth, vinga um sombrio silêncio.
No Q&A pós-projeção, Sebastian Mihăilescu, realizador de Mammalia, discutiu em detalhe o longo e conturbado caminho desde a conceção da ideia original do filme, até à obra final que estreou na Berlinale. Embora seja um filme contemplativo, que assumidamente faz sentir a sua jocosa meditação contemplativa, a sua esquizofrenia conceptual não se consegue esconder.
O filme foca-se na vida de um homem recentemente despedido do seu emprego, que, perante a entrada da sua namorada numa seita pagã feminina, entra em crise face à sua masculinidade.
Mihăilescu mencionou no Q&A a forma como o seu caminho até ao cinema passou primeiro por ser um “pintor falhado”. O talento pinturesco transborda em todos os planos, sendo a sua maior qualidade. Não se trata apenas da fotografia a 16mm, que mistura um ambiente frio com a entrada de amarelos quentes e decadentes, o enquadramento em si é onde a obra brilha mais. Quase todos os planos são longos e estáticos, sendo enquadrados em volta de conceitos individuais que se fazem sentir através da sua duração.
A estagnação estática da imagem não é o destino final, havendo sempre algo sinistro que começa a invadir o ecrã. Algo vivo, mas em putrefação, imagens paradas que parecem estar cheias de ovas de moscardo, prontas para nascerem e espalharem o seu zumbido monótono e ameaçador pela realidade apresentada. Um filme constituído, não por naturezas mortas, mas por naturezas mortas-vivas: planos mortos à beira de uma ressurreição demoníaca.
O cineasta menciona Buster Keaton como uma das maiores influências, algo visível na maneira como a segunda força que corrói estas imagens, além dos miasmas que o fora-de-campo emana, é o homem. Não necessariamente o protagonista, mas a figura do Homem como género, que deambula pela morbidez do filme sempre a tropeçar estapafurdiamente nas gavinhas do suposto caos feminino ao qual a namorada foi convertida.
Pior que Yorgos Lanthimos, realizador de algumas obras fascinantes, mesmo que acabe por cair muitas vezes num fetichismo auto-satisfeito de um estilo ascético vazio, são os seus imitadores. Desde o sucesso breakthrough d’ A Lagosta, festivais de cinema começaram a acolher uma praga específica de Lanthimos low-cost, que pegam na sua equivalência entre a escrita e atuação deadpan, com subversividade, humor e inteligência, sem conseguir emular o lado único que o torna interessante (ou desenvolver a sua própria visão única). Ao misturar a crise humana e o religioso sinistro com o humor juvenil recorrente, o filme poucas vezes chega a sair do registo de Lanthimos e a aproximar-se de Peter Strickland (um dos realizadores que melhor trabalha o humor e atuação deadpan nos últimos tempos, ao contrapô-los com humor excêntrico, fetichismo kitsch e um amor genuíno ao invés de cinismo).
O maior problema do filme acaba por residir no seu argumento. Mammalia, segundo o que foi dito pelo realizador após o fim do filme, nasceu deste se encontrar numa crise psicológica análoga à do protagonista durante o início do seu desenvolvimento. Ao amadurecer (desenvolvimento que coincidiu com uma troca de um argumento estrito por uma abordagem mais improvisada), mesmo que o problema já não preocupasse tanto o realizador, o tema tratado no filme não foi mudado. Isto leva a um apuramento muito trabalhado, não só do lado técnico, mas também da linguagem do realizador, que, sem perspetiva alguma, é por ser posto em serviço de nada. Não é que o rei vá nu (o rei vai com roupas lindas e extravagantes), ele acaba é por ser uma pessoa muito desinteressante…
Are you a bad guy or are you a good guy?, pergunta a pequena Smiley ao pai, atordoada por um sonho onde este lhe levantava a mão. Não demoramos a constatar que não é mau: entre um amor profundo nutrido pela filha e o aspecto quase infantil que se-lhe toma quando colocado ao lado da irmã mais velha, Gu Wengtong (Xin Baiqing) revela-se simpático e inócuo, mesmo que ausente enquanto pai.
The Shadowless Tower (Bai Ta Zhi Guang), do realizador chinês Zhang Lu, conquista desde o primeiro instante. Firmando-se o tom entre a discussão de sonhos e rituais apressados, vincam-se de imediato as personalidades que tomarão conta do ecrã nas próximas duas horas e meia. No papel de irmã mais velha cáustica, o timing cómico da atriz Li Qinqin brilha, e Wang Hongwei sobressai enquanto seu marido sidekick. Juntos, têm a guarda da sobrinha Smiley, a única personagem ainda incorrupta pelos calos do viver.
Gu Wengtong, crítico gastronómico, enfrenta uma crise de meia idade. Acompanhamos uma refeição em que o dono de uma tasca típica estabelece a fronteira a partir da qual se pode ser considerado “velho”: gostar-se da comida tradicional que serve no restaurante. Gu, afavelmente abatido, delicia-se com o prato que lhe é servido. Por outro lado, Ouyang Wenhui, fotógrafa excêntrica que acompanha Gu pelos restaurantes sobre os quais escreve, não é apreciadora. Seguindo o lugar-comum que se prevê em obras que retratam esta fase da vida de um homem, o atrito entre os dois é imediato.
A falta de jogo de cintura de Gu e o atrevimento de Wenhui inscrevem os diálogos num pingue-pongue onde cada tacada de Gu equivale a uma bola fora. Wenhui remata sempre com impulso, fazendo com que o homem tropece entre as palavras, cunhando aquela que virá a ser a sua frase chavão, repetida vezes sem conta daí em diante: “That’s not what I meant”.
Na dualidade entre mulher mordaz e menina que vê tudo com olhos puros de quem observa tudo pela primeira vez, Wenhui balança-se na corda bamba, a um deslize de cair no bordão de manic pixie dream girl. Há, por sorte, um embaraço que se estabelece entre as duas personagens, tornando a relação entre elas menos fantasiosa, circunscrita na esfera de uma vida muito mais caracterizada pela complacência do que por lascívia.
A presença de espelhos abunda, tanto na fotografia como no argumento – Gu é frequentemente confrontado com a sua própria imagem, e passamos a conhecê-lo ao mesmo tempo que ele se descobre a si próprio. Num processo inorgânico, a descoberta interna é explorada na mimese. Não é infrequente ver Gu a imitar, literalmente, os gestos e palavras dos que o rodeiam. Verifica-se a tentativa de parecer adequado ou inato, ou de tirar algum significado dos dramas subtis que se cruzam na sua vida, como a ausência do seu próprio pai, expulso de casa por um mal-entendido há quarenta anos.
Momentos que poderiam facilmente deixar-se imbuir de uma sentimentalidade bacoca são preteridos por aproximações tímidas e desastradas, mediadas por elipses. Os gestos de carinho são contidos, e a oferta para se limpar os óculos torna-se tão afetuosa como um afago. O reencontro com o pai, numa espécie de interrogatório policial, é uma das cenas mais espirituosas do filme; de seguida, o filho convida o pai a dançar ao som do DVD que transmite imagens de uma dança de salão. Balançam num abraço desastrado e não assumido, o nó na garganta do espectador confuso entre o riso e a lágrima. Neste sentido, há sabedoria inerente à cinematografia de Zhang Lu, que entende de intimidade e sabe perfeitamente quando esta deve ser respeitada. Nos momentos mais emocionais, afasta-se a câmara num panorama para a esquerda, atribuindo ao não-visto um significado intacto.
As referências intraduzíveis não abalam a história, traçando-se um perfil rico da cultura chinesa através de constantes referências a poetas, atrizes e canções. Zhang Lu pinta uma Pequim melancólica onde, no meio de todas as interações, resiste o templo budista White Pagoda, cuja arquitetura singular torna difícil observar a sua sombra. Reza a lenda que esta só pode ser vista no Tibet, a casa espiritual do templo, e esta dualidade ultrapassa o mito, podendo imputar-se a Gu. Preso entre Pequim e a cidade do pai, onde deixa a sua sombra; dividido igualmente entre o passado e o futuro, o justo e o injusto, o amor e a tolice.
The Shadowless Tower surge como um belo retrato das teias que ligam o ensemble de personagens a Gu em diferentes formas de amor, emoldurando o reflexo e renovando a crença na bondade. No final, o plano rima com a prosa de Lu Xun, um dos poetas que o filme benevolamente nos dá a conhecer: “Ilet out a yawn, light a cigarette, and blow out a puff of smoke. Facing the lamp, I silently pay tribute to these exquisite emerald heroes.”
Ao som de várias batidas e de um coração que de tanto bater pode parar, o cinema europeu vibra por estes dias na Berlinale. Um dos seus maiores protagonistas é Franz Rogowski, que se estilhaça numa infinidade de rostos. Reconhecemo-lo em filmes como os de Michael Haneke (Happy End), Christian Petzold (Undine) ou Malick (Uma Vida Escondida). Nesta edição do festival, podemos ver a estrela alemã dirigida por Ira Sachs (Passages) e pelo Giacomo Abbruzzese, autor de um dos títulos mais estranhos e sedutores da competição oficial – Disco Boy.
Não é disco, mas a eletrónica de Vitalic que ouvimos testar os limites das colunas de som do Berlinale Palast. A música cobre toda esta primeira longa-metragem assinada pelo cineasta italiano, um verdadeiro pesadelo surrealista que interliga duas realidades muito distintas. A primeira, um combatente de guerrilha nigeriano (belo Morr Ndiaye) em luta trágica contra as poluentes e gananciosas petrolíferas. A segunda, um órfão bielorusso em busca de outra identidade (Rogowski, justamente), chantageado pelo sistema para servir como soldado na Legião Francesa em troca da liberdade de viver na Europa.
Um forte homoerotismo na observação dos corpos masculinos lembra Claire Denis (Beau Travail) e atravessa a primeira parte deste Disco Boy; posteriormente, Apocalypse Now parece servir de grande inspiração aquando da entrada do bielorrusso no Delta do Níger. O encontro fatídico das duas personagens é realizado através de alucinogénicas imagens termográficas, um dos melhores e mais tensos momentos do filme, esteticamente ousado como Mandy, de Panos Cosmatos. Esta afeção visual é visceral e deslumbra, mas é a partir deste turning point que decorre uma indecidida mixórdia de reviravoltas e referências, deixando no ar demasiadas ideias soltas e simbólicas. Este excesso é nefasto e, em última instância, responsável por tornar Disco Boy uma vaidosa trip transcendental da MTV. Pelo menos, guardaremos a memória da inesquecível interpretação de Franz Rogowski que, na cena final e na sua dança de expatriado, levanta o dedo do meio à obrigação de ser reconhecido legalmente pelo Estado francês.
Também em Paris, o techno é motivo para Anthony Lapia contemplar os olhares, suor, beijos e fluídos que se trocam no club. A partir deste microcosmos e de planos muito apertados sobre todos aqueles que, under the influence, se permitem a conhecer, e entrecortando as cenas de dança com uma espécie de purgatório onde se dão as pausas de cigarro, conversas entre anónimos e busca por mais uma linha de cocaína ou pastilha de ecstasy, After (secção Panorama) é observacional e elegíaco. No fim da festa, restam as substâncias, a possibilidade do amor e as discussões sobre os efeitos do neoliberalismo naqueles que tentam sobreviver a uma semana de trabalho num emprego malquerido. O deslumbramento sobre a alegria contaminada é ambíguo e ainda bem. Mas After não chega perto da subversão inventiva de um Frágil (2022), que João Eça estreou muito recentemente em Portugal.
Mais para norte, em Londres e com a pop, são as drag queens que fazem a festa. Femme (secção Panorama) principia-se com o ataque violento de um chav homofóbico e temperamental (George MacKay) a uma drag queen (Nathan Stewart-Jarrett) e posterior reencontro numa sauna gay. Este é o mote para um thriller sobre a tentativa de vingança e sobre um amor cínico que tenta reverter ad infinitum os papéis de vítima e agressor. No Zoo Palast, o filme recebeu ovação em pé de um público excitado que, ao longo da trama, se sentiu inteligente, em controlo sobre o entendimento de todo o esquema maior de mentiras e desenganos…. Reconhecemos a excelência da interpretação dos belos protagonistas, como também a pertinência das ideias quanto à performance sobre as máscaras que assumimos no dia-a-dia. Mas é de lamentar que a eficácia deste filme inglês, assinado pela dupla Sam H. Freeman e Ng Choon Ping, deva muito às cambalhotas do seu script e a um estilo da realização descritivo, que namora, sem originalidade, com a publicidade e com o teledisco.
O tiquetaquear dos relógios relembram a passagem irrevogável do tempo, a memória daquilo que não volta mais, mas também a muito humana capacidade de reinventar a vida. Susana Nobre projeta essa capacidade através de Helena (Raquel Castro), autêntico espelho com quem esbate as fronteiras da realidade, da ficção e da memória pessoal e coletiva, não obstante Cidade Rabat (presente na secção Fórum da Berlinale) ser a sua primeira ficção apoiada num argumento escrito.
A autora dos recentes No Táxi de Jack (2021) e Tempo Comum (2018), títulos que também observam aqueles que tomam as rédeas do seu destino, propõe, desta vez, uma viagem conduzida pela interioridade de Helena, mulher que se vê forçada a lidar com as particularidades do luto da mãe. A realizadora filma com calma, ternura e generosidade, escapando, também na direção dos seus modelos, a qualquer sentimentalismo ou condescendência televisiva.
Como Susana Nobre, também Helena trabalha em cinema, cuidando de relações intercedidas por horários, dinheiro e outras ficções, motivando assim a observação sobre várias redes de relações de pessoas. Pelas aparições que se sucedem, não será descabido vermos Cidade Rabat também como uma carta de amor às pessoas e princípios da Terratreme, produtora de que Susana Nobre é uma das fundadoras.
A certa altura, quando Helena faz serviço comunitário no Clube Desportivo da Reboleira e Damaia, vários espelhos se refletem ao infinito – Helena, que víramos inicialmente a organizar figurantes para uma rodagem, aponta a câmara de filmar para a sua própria imagem, como que se redescobrindo protagonista, alguém que decide a vida que acontece a cada instante.
No rescaldo do visionamento de Cidade Rabat, seguiu-se uma entrevista a Susana Nobre conduzida pelos autores do Cineblog Kenia Pollheim, Flávio Gonçalves e Ricardo Fangueiro:
Ricardo Fangueiro: Cidade Rabat parece ser construído em torno da ideia de família e comunidade. Percebemos que é filmado com muitas pessoas que trabalham na produtora Terratreme, muitas caras conhecidas. Havia essa vontade de se focar na importância dos vários coletivos e comunidades onde nos inserimos?
Susana Nobre
Susana Nobre: Não, como intenção, penso que não. O filme tem alguns aspectos autobiográficos e em relação ao projeto, a escrita é focada em alguns aspectos da minha vida, que surgiu principalmente como ponto de partida, uma janela para a escrita do projeto. A sequência inicial da descrição do prédio existiu quase como uma espécie de filme autónomo que eu já queria ter feito, uma curta-metragem, uma memória descritiva do prédio da minha infância. Era exatamente capaz de me lembrar de cada pessoa que lá vivia, sabia descrever a casa delas, os nomes… Queria fazer esse exercício como filme.
Depois, também já tinha filmado algumas coisas no Clube Desportivo, mesmo ao lado do bairro da Reboleira, onde o Basil da Cunha costuma fazer os filmes dele, e onde eu também estive, efetivamente, a fazer trabalho comunitário. Eram coisas que eu já tinha até explorado com a câmara, tanto o prédio como a Reboleira. São coisas que eu depois acrescentei à história principal – da morte da mãe – e centravam na ideia do ritual da morte, da partida, a partir da minha experiência. [Juntei] estas coisas de uma maneira um pouco imprevisível, sem saber muito bem onde é que me iam levar em termos de narrativa e de correspondência entre as coisas. Acho que [a comunidade e o coletivo] estão lá, mas não através de intenções completamente dirigidas, nem controladas.
Kenia Pollheim: A Susana falou de um trabalho autónomo sobre as portas e histórias, e é assim que começa este filme. Achei interessante vermos as memórias da personagem principal com as portas e o rasgo dessa memória no papel da mãe. Pode falar-nos um pouco desse acto, do rasgo físico da memória? Parece-nos que as lembranças não têm o mesmo valor para a mãe e para a filha…
SN: Não sinto que os movimentos no filme estejam tão sublinhados, mas existe de facto esse movimento contraditório entre a mãe que quer apagar o rastro dela, e a Helena, que tenta resgatar alguma coisa da sua própria vida. Penso que a personagem projeta-se já na vida da mãe, num lugar que sabe que em breve ocupará. Não são conceitos que tenha trabalhado de uma maneira muito direta mas que existem, de facto, no filme.
Flávio Gonçalves: A personagem trabalha em cinema como produtora, cuida dos horários e vê-se uma ligação com os relógios que vão aparecendo no filme: o tempo, a morte… Quando aparece o trabalho comunitário no Clube Desportivo, há uma ligação da montagem do ponto de vista da realização com a personagem, até chegarmos ao momento em que a personagem se filma ao espelho. Acha que a Helena é uma personagem que se esquece de si própria, demasiado atenta em organizar a vida dos outros, mas que se vai esquecendo?
SN: Sim, penso que esta personagem, quando a encontramos, é uma pessoa que aparece sempre em reação às coisas, a resolver problemas numa certa cadeia produtiva do quotidiano. Penso que, quando aceita o trabalho comunitário, existe esse desejo de fazer qualquer coisa que está fora dessa cadeia [e acho que é isso] que a leva a aceitar, ainda de uma forma um pouco incerta, o trabalho comunitário, para ter esse espaço de atenção. Ela esteve naquele bairro a trabalhar como produtora, com relações muito mediadas pelo dinheiro, e o bairro aparecia como décor. Depois volta com um outro olhar sobre aquela comunidade. Isso também era uma coisa que eu queria ter destacado no filme.
Em relação aos relógios, isso sim foi uma coisa muito de argumento. A ideia de que, quando entramos em casa da mãe, estamos sempre a ouvir o relógio, o tempo, cada minuto é importante. Assim, quando chegamos ao fim do filme, o tempo parou, o relógio está tombado. Já são coisas que têm mesmo a ver com a estrutura do filme.
KN: Essa questão de que a vida continua… No Tempo Comum (2018), há o nascimento de uma criança e nós vemos os passos da reinserção dos novos pais na vida social, numa pequena casa em Lisboa, com os amigos e família… Não sei se é propositada ou não, mas há a contraposição do nascimento desse filme com a morte em Cidade Rabat, mas principalmente a ideia de que há muito mais para além do que nos acontece. A vida continua e as coisas vão-se desenvolvendo sem o nosso controlo e isso é enfrentado neste filme de uma maneira muito contida. Vemos a Helena muito tensa, mas sem muita preocupação com o que vai fazendo. As coisas parecem até um pouco [desajeitadas] quando finalmente explodem como na cena da dança ou nos momentos informais com a sua equipa de produção.
SN: É a ideia desta mulher que esteve num ambiente de doença, de morte, que teve uma necessidade enorme de viver outras experiências, e é isso que a leva a ter uma série de impulsos que a põem numa espécie de euforia, de querer viver a alegria do mundo. Ela quer sair daquele universo mórbido. Quer, de certa maneira, acreditar na vida. A ideia de alguém que viu a morte de perto e que precisa de voltar a acreditar. Acho que ela tem essa euforia e, por um lado, acho que há uma ligeira evolução na sua vida e, quando chegamos ao final do filme, não é que tenha havido uma grande evolução, mas sabemos que ela talvez esteja já preparada para viver qualquer coisa de novo, mesmo que não saibamos o quê.
FG: Talvez através do cinema?
SN: Não sei… Ela faz cinema, mas podia fazer outra coisa… Podia escrever, por exemplo. É mais essa ideia de fazer qualquer coisa que tenha a ver com uma vida mais contemplativa.
KN: Isso nota-se já no trabalho com a comunidade no ato de filmar o Clube Desportivo em si.
FG: E há, no filme, uma visão do mundo acolhedora. Não há grande hostilidade entre as pessoas. Talvez esse acreditar na vida possa vir através dos outros, no dar atenção aos outros como já acontecia com a mãe? Os modelos que usou também fazem parte da vida da realizadora, está tudo muito unido, certo?
SN: Sim, há uma composição. É um filme de ficção, é tudo sempre ficcional, mas as coisas partem de experiências da vida que são, depois, muito elaboradas.
FG: E faz-lhe sentido isso de ser acolhedor? Quando se faz um filme, está a criar-se uma certa visão do mundo, um ideal. Neste filme só me lembro de um momento em que se sente uma falta de segurança, um mundo não tão ideal… Ou isto é simplesmente uma coincidência das pessoas que a rodeiam?
SN: Não tenho uma visão muito determinada, ideologicamente, no filme. Não estou a defender nada, estou a juntar as peças e ver o que comunicam entre si. Terei uma tendência, talvez, em fazer filmes com final feliz, apesar de atravessarem depois coisas muito duras. Mas isso talvez já venha da minha personalidade.
FG: Quando se olha ao espelho, há uma certa calma. O filme pode ser intranquilo, mas revela um modo de estar no mundo… Essa ideia de se esquecer de si mesma também estava presente no argumento, na ideia para a personagem?
SN: Sim, acho que há um apontamento auto-reflexivo, mas podem fazer vocês a psicanálise. [Risos]
RF: O filme marca o ritmo do quotidiano, como foi esse trabalho na montagem? A Susana esteve muito presente, foi importante para intensificar esse ritmo?
SN: Estive muito presente. Foi uma montagem bastante feliz. [Cidade Rabat]foi um filme de argumento, montámos a partir do argumento. Não houve um arranjo em termos de ritmo para dar nuances diferentes. Foi mais um trabalho de economia, retirar o que pudesse interromper o filme, foi mais essa a orientação.
KN: Quanto ao trabalho da Raquel Castro, a relação que se criou entre realizadora e atriz e a forma como ela encarna esta personagem, de uma pessoa que está numa espécie de pausa na vida, é bastante intensa. Há também uma contraposição com os outros filmes, sendo o primeiro com argumento escrito, era algo de que sentia falta?
SN: Foi muito interessante, eu não vi mais ninguém. Foi um castingúnico, foi o André Silva Santos, assistente de realização do filme, que me sugeriu a Raquel depois de ter visto um vídeo com ela e eu achei que sim. O André já conhecia o argumento e achou que a Raquel seria interessante. Encontrámo-nos, conversámos, e havia algumas coisas da sua história de vida que me deram alguma garantia que havia um background bom para se trabalhar a personagem. O facto de ter sido enfermeira, de ser mãe… A partir daí tive uma confiança de que conseguiríamos fazer o trabalho juntas e avançarmos. Fiquei bastante satisfeita, acho complicado lançar expectativas com atores naqueles castings enormes, que são importantes, mas foi bom não ter de entrar nesse domínio. Fui muito feliz porque fez mais sentido assim, e fortaleceu a confiança da Raquel no trabalho.
O processo da Raquel com a personagem foi bastante vivo, não houve uma receita imediata do argumento que se impôs desde o início para ser executada na rodagem. Estava sempre qualquer coisa a funcionar, ela ia fazendo as suas tentativas. Nós rodámos dois meses, e a partir do meio da rodagem ela estava já quase completamente autónoma.
FG: E já está a ser pensado um próximo filme…?
SN: Sim, já há uma ideia. Gostava muito de continuar do trabalho com a Raquel, ainda neste trilho da vida de uma mulher…
Flávio Gonçalves, Kenia Pollheim Nunes e Ricardo Fangueiro
“Tu és o meu assassino”, diz Ingeborg Bachmann (Vicky Krieps) a Max Frisch (Ronald Zehrfeld), o seu companheiro controlador, ciente da influência negativa daquele homem que a impede de se tornar a escritora independente e livre que pretende ser. Ingeborg Bachmann: Journey into the desert, de Margarethe von Trotta, é o filme biográfico da escritora e poeta austríaca, Ingeborg Bachmann. A realizadora alemã volta a um género que conhece bem, tendo já assinado, anteriormente, biografias como Hannah Arendt (2012) ou Searching for Ingmar Bergman (2018), entre várias outras ao longo da sua carreira.
Apesar de algo insípido e formalmente preso a um cinema convencional e comum, o filme também tem momentos de grande primor estético e surrealista. É justamente quando o filme se permite a isso, que a energia emancipadora de Ingeborg vem à tona e ficamos mais agarrados à sua história.
A proposta da realizadora alemã é contar em paralelo duas alturas distintas da vida da escritora: a primeira, quando vive com o escritor suíço Max Frisch; a outra, quando viaja pelo deserto com o seu novo amante Adolf Opel (Tobias Resch). O título do filme remete para essa viagem que, além de literal, é também metafórica. O deserto pode ser visto como símbolo de um caminho infinito e sem obstáculos pelo qual a escritora tenciona correr. Essa corrida acaba mesmo por acontecer. A dada altura Ingeborg confidencia a Adolf que sempre teve o sonho de “ter relações com vários homens, jovens e bonitos, ao mesmo tempo”. Quando esse desejo se realiza e consegue “vingar-se” da clausura onde o universo masculino a pretende encerrar, acontece mesmo essa correria livre pela paisagem deserta, da qual emana a sua alegria.
Talvez pouco conhecida fora da Alemanha, Ingeborg Bachmann é retratada neste filme como uma mulher brilhante de fulgor desafiante e corajoso, rumo à expectativa da sua total emancipação. Procurando libertar-se de um marido controlador e de feitio machista, que teima em intrometer-se na sua vida, o casamento é entendido por si como um impedimento da liberdade feminina. Entre a convenção do casamento e da vida doméstica, e a energia criativa que guarda, Ingeborg não consegue encontrar o equilíbrio, pelo que o único caminho é despojar-se dessas convenções. Ingeborg Bachmann: Journey into the desert é hábil a mostrar o exemplo de uma mulher que faz uso da sua coragem para conseguir a independência individual e criativa num mundo, como constatamos em muitas cenas, ocupado por homens. A notável interpretação de Vicky Krieps oferece momentos de enorme emoção e, apesar de, como foi dito anteriormente, o filme estar demasiado formatado na sua conceção, a realização de von Trotta é exímia e pouco há a apontar nesse sentido. Faltou apenas ser mais como Ingeborg Bachmann e desembaraçar-se corajosamente das amarras que restringem a sua força cinematográfica.