Years ago, I was working on a movie…: That’s a combination 

O mais recente filme de Marion Naccache estreou em Portugal no dia 29 de Abril na competição Silvestre do Indielisboa.

Ao volante deste road movie, cujo aroma alegórico se manifesta em notas de Nadja (Breton) e de Ulysses (Joyce), deambulamos na primeira pessoa, perdidos numa estrada de Nova Iorque. O filme é construído sobre uma conversa, sem pressas, um plano sequência e um intermitente périplo noturno, iluminado por letreiros como os de Nighthawks (Hopper) e por luzes vermelhas e verdes de um trânsito que parece ter sido atingido pelo cupido. 

Years ago, I was working on a movie…, Marion Naccache © Marion Naccache

A viagem adquire um sentido duplo, contrário ao da estrada, à medida que Tom Jarmusch, em conversa com a realizadora, reconstrói, através da memória, pequenos contos reais, de génese Beatnik, oriundo do mesmo jardim de Robert Frank, da poesia de Allen Ginsberg ou de Patti Smith. Filmes que correram mal por terem tudo para tal, problemas técnicos e outros que cambaleiam para qualquer lado menos para a resolução, orçamentos sempre ausentes ou escassos, peixes mortos, lugares estranhos e traficantes de esquina com muito serviço, surgem numa constelação rica e intrigante.

Years ago, I was working on a movie…, Marion Naccache © Marion Naccache

Years ago, I was working on a movie… é uma história dupla sobre a relação com a câmara, que vai e vem, e nesse fluxo transporta e combina histórias do panorama do cinema independente dos anos noventa em Nova Iorque, vividas por Tom, e uma autocitação sobre a realização do próprio filme que vemos, feito entre o ano de 2004 e o ano passado. Não chegamos a perceber bem para onde dirigem, mas ficamos a par de um arquivo geográfico de antigos lotes e lojas de conveniência que desapareceram ou existem agora noutro local, juntamente com as personagens que surgem a propósito desses espaços. Almas errantes, tão nítidas no cinema de Jim Jarmusch, irmão de Tom. Tudo isto se escuta à medida que a noite cerra e o carro avança incerto no plano com um bokeh em forma de corações, que poderá ser uma escolha estética ou a representação de pequenos desejos ou talvez de uma visão ébria da estrada. 

Marion Naccache aborda o cinema na ligação direta com o fazer, from hand to sight (no sentido que poderá ser atribuído às esculturas From Hand to Mouth de Bruce Nauman) relacionando-se com a câmara, tanto pelo que está a ser feito como por o que está a ser dito. Não é isso, antes de tudo, o cinema? 

Sebastião Casanova

Pátio do Carrasco: Mitos lusitanos e assombrações kafkianas

Através de um rigor formal e um modo clássico de fazer cinema, André Gil Mata propõe-se neste Pátio do Carrasco, a contar um episódio da história do último carrasco português, Luís Alves. A média-metragem, presente na competição nacional do Indielisboa, começa com um narrador que nos dá conta da figura deste homem, cuja vida foi trespassada por peripécias e vários crimes. Por esses delitos viria a ser condenado à morte ou, como alternativa, ser condenado à tarefa de carrasco do reino. A decisão era, aparentemente, simples: morrer ou matar.

A exposição inicial da vida do algoz Luís Alves não nos prepara para o que aí vem. Um filme com poucos diálogos e um tratamento de som importantíssimo para o seguimento do que nos é mostrado ou escondido. Através dos gestos e rotinas das quatro personagens, damos conta do mistério que se adensa. A inspiração kafkiana (o filme baseia-se no conto Um Fratricídio, de Franz Kafka) faz-se perceber na temática e na fotografia do filme, mas não estaremos a exagerar se também dissermos que faz lembrar algumas obras do cinema português, de Manoel de Oliveira a António de Macedo. André Gil Mata deixa-se mesmo influenciar pelos melhores e é hábil na conceção das suas ideias. Porém, o filme parece também nunca conseguir soltar-se do formalismo da sua composição notável, não se permitindo ser invadido por outras descobertas cinematográficas.

Filmado em estúdio e contado em vários capítulos, a obra estabelece um jogo de perspetivas sobre a noite de um crime. Por vezes expressionista na fotografia e em determinados gestos técnicos – os constantes travellings e zooms contribuem para a sensação de prenúncio sobre o mal que irá ocorrer -, o filme conserva uma herança teatral devido à prestação dos atores e da misé-en-scene. Assombrado, melancólico e com laivos de terror, este pátio é filmado de maneira exímia, com cenas longas e silenciosas, que dão ideia do tempo real daquela noite e aumentam a tensão antes do crime.

Pátio do Carrasco, André Gil Mata © Rua Escura, Agente A Noite, Primeira Idade

Também de janelas se faz este filme, onde o início de cada capítulo começa justamente com o enquadramento de uma, seguido de um travelling para o interior de casa. A janela é um elemento central na arquitetura deste espaço, que permite testemunhar o que ocorreu noutro lugar (à semelhança de Janela Indiscreta, 1954), fortalecendo a ideia da visão subjetiva de cada um, desta feita através da sua janela. 

Talvez este filme faça um percurso discreto por festivais. Público e programadores estarão interessados em filmes que pensem mais o presente e as dinâmicas atuais, fazendo com que filmes de grande inspiração literária e de construção tão precisa como este, não sejam o prato forte dos festivais neste momento. Contudo, é bom saber que também se encontra vitalidade nas formas mais clássicas de fazer cinema.

Ricardo Fangueiro

Creuse, onde o som se presentifica

Creuse (2022) é um constante trabalho de presentificação do som. O baque surdo que dele emana torna possível a emergência de um exercício necessário à não-existência de uma vida. Por levar ao extremo a sinestesia da experiência cinematográfica é uma curta-metragem que se distende. Por pedir um tipo de compreensão anormal, é exibido numa maratona noturna, em Boca do Inferno, no Indie Lisboa.

Guillaume Scaillet, autor de En pleine Lulu (2020), Jouvencelle (2021) e de Extra Flavour (2021), presentifica-nos, desta vez, com uma obra marcadamente sua, uma ficção que se estende numa realidade de horror, mostrando uma rotina polvilhada de gritos interiores e de imagem decepadas onde o silêncio dá lugar aos limites da destruição. Aqui, o trabalho sonoro de Pierre-Louis Clairin, Adrien Cannepin, e Mikhael Kurc, impõe-se sobre a restante produção, conferindo um peso avassalador à presença do som e do silêncio, a sons que não devem ou não podem ser ouvidos, e à preponderância que a audição constitui em relação à perceção de um mundo e de um corpo.

O espectador entra na narrativa através do silêncio, que é fácil de aceder, ficando depois prisioneiro dela, mesmo quando este silêncio se transforma em ruído inusitado, desagradável e ensurdecedor. Só há um movimento de libertação possível, através da paragem do tempo, de uma fuga do desespero, de um abrandamento progressivo do batimento cardíaco – cujos atributos consoladores poderão fazer desaparecer a angústia terrível de ter de ouvir o interior de si.

O agenciamento de décors simples fazem focar a atenção no único personagem da narrativa, Marc, interpretado por Raphaël Quenard, cujo papel é certamente de difícil digestão. O desconforto que faz sentir ao espectador transfigurado por cada fração das suas expressões faciais afigura-se igualmente como um elemento de extrema importância na compreensão das relações entre o eu e o outro, o eu e o mundo, o eu e o seu interior. 

Creuse, de Guillaume Scaillet – © Direitos reservados

As paredes frias e sem veios são cobertas por placas de silêncio devastador, afirmando o horizonte gélido sem limites que circunda o protagonista. Marc, numa fase inicial, rodeia-se de um esforço atento às práticas saudáveis que nutrem o seu corpo. Mas, de súbito, os seus olhos retêm fixamente o vazio ou talvez a esperança do regresso próximo de Louise, a sua namorada. Num movimento estático, os ponteiros do relógio dão-lhe uma leve noção de tarde. Durante alguns instantes ainda tem tempo para respirar, antes que o sangue lhe sacuda a cabeça, antes que as fogueiras ininterruptas comecem a incendiar o interior da sua consciência. A ausência desta figura feminina é um catalisador da sensação do vórtice anguloso de agonia, pelo que junto do seu ventre desmaiam bofes de vísceras, mais do que os da respiração ou do cansaço. Abre-se por dentro dos gritos num movimento que só cessa quando o batimento acelerado de um coração ansioso dá lugar ao silêncio que se quis impor na escuridão do dia.

Creuse dá uma significância aos sons ensurdecidos pelo invólucro que é o corpo, sendo um filme que dá a ouvir o que não é ouvido. Estar dentro do próprio ser na eternidade da escravatura da rotina pode ser um fardo exaustivo. Conseguir ouvir um tendão a distender ou o pulsar de uma veia pode ser intolerável ao ponto de ser necessário ser exterior ao seu corpo, independentemente de todo o cuidado e atenção prestados a si mesmo.

Numa dialética contraditória que se vai estabelecendo ao longo do filme tem-se a passagem de um silêncio ao barulho, de uma presença a uma ausência, de planos calmos a esdrúxulos. A respiração funda e final fazem sentir que o dia findava e teria de findar naquele momento. O esboçar de um sorriso indecidido como o de uma criança só poderiam existir se houvesse uma entrega do corpo delirante à própria dor sôfrega. A audição que se intensificava teria inevitavelmente de dar lugar a pingos azulados de sangue vermelho. A vida teria inexoravelmente de esvair-se para dar lugar ao chilrear dos pássaros.

Catarina Gerardo

Euridice, Euridice: Cessa a melodia

Em dezembro de 2021, Maria Filomena Molder apresentava a primeira das suas Três Conferências: Lança o teu pão sobre as Águas (sobre o Qohélet/Ecclesiastes), afirmando a certa altura que dizer “uma vida inteira com alguém” só se pode fazer uma vez — este “toda a vida” não é cronológico, mas sobre a vida de um amor que existe.  Noutra sala do mesmo edifício estreou esta segunda-feira Euridice, Euridice (2022), a curta-metragem de Lora Mure-Ravaud em competição internacional no Indie Lisboa. 

Euridice, Euridice, Lora Mure-Ravaud ©Alva Film – 5à7Films – Preludes

É algures dentro deste amor intenso que o filme nos coloca, como um terceiro elemento, disponível para refletir sobre Ondina (Ondina Quadri) e Alexia (Alexia Sarantopoulos) bem como sobre o elo carnal e apaixonado que entre as duas resplandece. Entre o ruído lânguido dos beijos ternurentos e a beleza natural das formas e do afeto que tecem uma pela outra, situamo-nos duplamente na antiguidade clássica do mediterrâneo e na contemporaneidade de uma relação que podia ser nossa. A lira de Ondina não é a bateria que toca, mas a transparência dos seus olhos verdes, como o escudo em que Caravaggio se retratou como medusa petrificada. O que promete afastar Alexia é a imperatividade do que a faz musa, uma rodagem de um filme na Grécia. 

O filme de Lora Mure-Ravaud devolve-nos o mito de Orfeu e Eurídice, sobre os cristais de planos aproximados que nos angustiam com perguntas sobre o que já sabemos. O desaparecimento é revisitado à luz do gesto e da falta dele, contemplado como se de uma métopa se tratasse: olhamo-la alto, erguida entre belos adornos e apesar de vazia não nos poupa sentidos. Somos transportados dentro deste amor onírico, através de uma narrativa que envolve liricamente as cores e os lugares de forma a que lhe possamos quase sentir o cheiro: os estofos dos bancos de trás do carro, os lençóis frescos e profundos, o café quente da manhã, o cuidado transparente de um choro, o calor vermelho da noite, a aridez quente de um dia, em que se canta a gritar, a plenos pulmões uma dor que se aceitou. O efeito do tempo é tão magnético como tudo o resto, pela alternância entre a riqueza visual combinada com o silêncio e uma misericordiosa voz-off sobre fundo negro, que a certa altura nos vem salvar. 

“Procurar-te nos outros 

e falhar

não te encontrar 

mas ter sempre comigo 

o gigantismo da tua ausência” (Sónia Balacó).

Sebastião Casanova

Entre a Luz e o Nada: uma rave cósmica sem sair do sítio

Um conto de ficção científica alucinado ou o retrato fiel de uma esfera queer lisboeta, caracterizada por um desejo de emancipação e apreço aos apetites corporais. Uma viagem, poderíamos dizer, INTRA-galáctica, pelos planetas do nosso inconsciente, pois os sonhos, visões e delírios, formam o núcleo da narrativa. À primeira vista, parece que Entre a Luz e o Nada, de Joana de Sousa, vem na sequência de uma nova vaga do cinema português, que traz consigo muita cor, adereços e décors excêntricos, drogas e raves. Isto, à semelhança de dois dos vários exemplos dessa corrente: Verão Danado (2017) ou Frágil (2022).

Entre a Luz e o Nada, Joana de Sousa © Primeira Idade

As primeiras imagens do filme pertencem à curta-metragem Universe (1976), de Lester Novros, que relata os mistérios espaciais pela célebre voz de William Shatner, e que serve de prólogo para o foco num grupo de jovens que se prepara para uma rave num edifício abandonado. A dada altura, o narrador pergunta: “Is space travel to these planets possible?”. O filme parece dar a sua resposta. Como é dito pelo mesmo narrador, tudo à nossa volta é feito de poeira de estrelas muito distantes, reforçando a ideia do lugar dos seres humanos no imenso cosmos e a nossa pertença ao mesmo. Além dessa pertença, há uma intenção de criar um olhar alienígena sobre estas pessoas e em particular sobre Shade, a protagonista que sofre de insónias devido a umas luzes que aparecem no céu.

Depois de sermos apresentados a este espaço, Entre a Luz e o Nada é um devaneio colorido de pessoas assombradas por visitas siderais. O filme acaba por ser uma caderneta de símbolos, como se pode perceber pela sinopse: “Cosmos, golfinhos, techno e solidão. Borboletas, amor e raves. Fechamos os olhos, e atravessamos todo o universo numa única noite.” Tal delírio pertence às fantasias comuns de uma geração, que serve de dispositivo para a criação do universo do filme. Também daí vem a frescura de Entre a Luz e o Nada, cheio de fórmulas onde se encontram latentes as capacidades de, quem sabe, trazer algo de mais interessante do que este resultado, no futuro. Fica o prenúncio: quando seres de outros planetas nos visitarem, encontrar-nos-ão num edifício em ruínas a dançar ao som de techno.

Entre a Luz e o Nada, Joana de Sousa © Primeira Idade

Note-se que este é um registo muito diferente do seu anterior Bétail (2014) e que pode significar um desvio curioso na obra da realizadora. Entre a Luz e o Nada revela-se inspirado pelos mistérios de visitas alienígenas ao nosso planeta, de memórias de infância ou sonhos lúcidos, projetando-se num cruzamento estético dos anos 80 e 90. É uma procura por novos corpos, novos animais, novas formas de ser, e que deixa subjacente uma questão curiosa: porque procuramos vida noutros planetas se continuamos a encobrir tantas vidas neste?

Ricardo Fangueiro

Naquele Dia em Lisboa: Um músculo no braço de ferro contra o esquecimento

Em 1940, chegavam a Portugal milhares de refugiados europeus, maioritariamente judeus, com a esperança de fugir ao terror nazi que na época se alastrava pelo continente. O nosso país, no limite da Europa, representava um temporário porto seguro, uma paragem crucial no caminho do seu verdadeiro destino, na América. Mais de 50 anos depois, umas películas dessa mesma altura acumulavam pó num canto do ANIM, até Daniel Blaufuks pegar nelas para o seu mais recente filme, Naquele Dia em Lisboa, programado numa das sessões especiais do 20º IndieLisboa. 

As imagens, já tendo passado pelo processo de catalogação e registo, não foram, por isso, recuperadas pelo realizador, mas sim redescobertas. A sua origem é turva e pouco se sabe delas além do ano e o seu autor, o diretor de fotografia e vencedor de um Óscar, Eugen Schüfftan. Apesar desse galardão, é mais conhecido pela técnica de efeitos especiais que aperfeiçoou e popularizou em Metropolis (1927), de Fritz Lang, permitindo, com o uso de um espelho, inserir os atores em cenários minúsculos, criando, a partir desses elementos distintos, uma imagem coesa. É interessante, portanto, pensar nessa mesma pessoa a gravar as multidões numa Lisboa demasiado pequena e adversa para as comportar. Podia ser ilusão, mas é a incredulidade que a guerra traz. 

À vista disto, o filme torna-se desde logo importante pelo mero facto de tornar o arquivo acessível ao público. A gravidade que se veio a acumular com o cair dos anos torna-o num monumento histórico, elemento da nossa memória coletiva e, porventura, até individual. Assim, tratando a matéria-prima enquanto músculo essencial no braço de ferro contra o esquecimento, Daniel Blaufuks trabalha-a ainda mais.

Naquele Dia em Lisboa © Direitos Reservados

A voz de Bruno Ganz surge enquanto fio das imagens, numa narração que coloca o espectador português num lugar estranho ao seu. Ao passo da força visual, ouvimos descrições sobre os nossos costumes, as nossas paisagens e, mais importante, sobre uma realidade que não nos foi familiar. Da nossa posição isolada, seja esta geográfica, ideológica ou social, não fomos submetidos à necessidade de fugir à Guerra, nem a vivemos da mesma forma que o resto do continente. 

O mais interessante, contudo, encontra-se na velocidade das próprias imagens, manipuladas ao ponto de se arrastarem no tempo. Desacelerando, encontra-se a contemplação, a possibilidade de olhar para vários pontos distintos e pensá-los de formas diferentes. Parecem figuras assombradas, sobressaltadas pelo conhecimento que temos hoje, movendo-se, parecendo, fotograma por fotograma, num turbilhão inidentificável. Portugueses, refugiados, pontos no tempo.  O produto é tão melancólico e desconcertante como o piano que o acompanha, sublinhado também pela ocasional coloração das imagens, ora azul, cor-de-rosa ou até semi-realística, cujo impacto nos transporta a um ponto ainda mais longínquo da história das imagens em movimento. 

Esta manipulação (expressão totalmente desprovida de qualquer conotação negativa)  é uma predileção do artista, no âmbito de explorar os interstícios da imagem e do vídeo, levando-o por isso até a distanciar os seus filmes da própria ideia de cinema. Pelo menos a que assume muitos espectadores terem. Isto é, motivado, em grande parte, por uma narrativa. Por isso, agrada-lhe a categorização do “experimental”, não propriamente da sua perspetiva enquanto cineasta, mas sim numa possível experiência para o espectador, que se deixará levar pelo desafio à atenção, ao foco e à imaginação de uma realidade distante. Quem eram aquelas caras a passar naquele dia em Lisboa?

Margarida Nabais

O desmantelar do ego lusitano em Rosinha e Outros Bichos do Mato – Entrevista com Marta Pessoa no IndieLisboa

Rosinha e Outros Bichos do Mato, a mais recente longa-metragem da realizadora Marta Pessoa, estreou mundialmente no IndieLisboa. Na ribalta, a Exposição Colonial Portuguesa de 1934, realizada entre junho e setembro no Palácio de Cristal, no Porto, cujo objetivo era realçar a “grandeza do Império Português”. Aldeias erguidas nos jardins, parque zoológico com animais exóticos, réplicas de monumentos ultramarinos – o símbolo do império português, que se dizia uma grande nação por vias dos países ocupados, procurava ser um objeto de desejo. 

A utilização de imagens e vídeos de arquivo, acompanhada do texto denso, é reveladora do racismo secular emergindo dos poros de um império que erotizava a imagem dos povos africanos, em específico da mulher – por isso Rosinha, a mulher-símbolo de peito nu. 

O filme de Marta Pessoa, com argumento desta e de Rita Palma, apresenta no ecrã um questionamento constante sobre as práticas de uma Exposição que serviu de ode à virilidade lusa, num tempo onde muitos ainda defendem que Portugal não é um país racista. Numa exploração que transmuta o significado de nação e pertença com encenações dramatúrgicas em vários atos — destacando-se a atuação sem igual de Binete Udonque — Rosinha e Outros Bichos do Mato mantém aberta uma discussão indispensável sobre racismo e colonialismo, e a maneira como desencaixotar os arquivos pode ser uma maneira de repensar e reestruturar estigmas passados.

Entrevista com Marta Pessoa no IndieLisboa

Kenia Pollheim Nunes (KPN): Em Rosinha e Outros Bichos do Mato temos três vozes que aparecem. Duas vozes femininas em conversa e uma voz masculina que lê e explica os excertos de enciclopédias e textos ditos científicos. A narração foi sempre uma espécie de mote que conduzia o filme ou surgiu do resultado dos outros factores?

Marta Pessoa (MP): Todo o filme teve um processo de escrita e de pesquisa muito longo. Passou por várias versões. Começou por ser pensado mais como um filme já  com este título em 2016, e entre esse tempo muita coisa se passou. A determinada altura, quando já tinha o material mais ou menos todo reunido, percebi que quem tinha de falar daquilo, quem tinha de dar a “voz e o corpo ao manifesto” tinha de ser eu e a outra pessoa que escreveu o argumento. Não era bem uma estreia para mim, talvez uma semi-estreia, no filme anterior já tinha começado a aparecer em campo, não com a voz, mas com a minha presença. Alguns cineastas sentem-se muito confortáveis nessa situação – eu não, por isso fiz esse ensaio –, e neste filme achei que tinha de ser eu, que tínhamos de ser nós a fazer. Foi no processo de escrita para esta versão final que nos apercebemos que tínhamos de ser nós a fazer esse questionamento, que não podíamos deixar isto em mãos alheias porque essa é a nossa História e é uma História que estamos a questionar. A partir do momento em que percebemos isso, houve essa construção e nunca mais largámos a narração do início ao fim e começou logo por aí: “que frase é esta?”, “será bom começar o filme por aqui?”, “o quê e como é que queremos contar”.

Depois, também foi evidente que precisávamos de uma voz para aqueles textos todos que fomos encontrando. Devo dizer que há uma coisa muito importante, a maior parte deste material, talvez 95% do que aparece no filme, está disponível online. Isto para mim e para a Rita Palma [co-argumentista], que construiu isto comigo e é a outra voz, foi muito importante. Todo o material fílmico está disponível online, a maioria das fotografias também, assim como grande parte dos textos. Isto para nós foi fundamental, porque assim quem quiser ter acesso a esta história pode ter, basta pesquisar. Não precisa ir a arquivos fechados, nem a caixas recônditas. Está tudo muito acessível e estando disponível, tínhamos mesmo muito texto e material. E para nós foi evidente que quem tinha de ler aquele texto tinha de ser um homem para representar a voz masculina, o olhar masculino, o discurso do regime da ditadura, o discurso oficial. Só a determinada altura é que percebemos que podia ser só uma voz. Tínhamos pensado que, como há a voz dos repórteres, do diretor da exposição, dos “cientistas” – entre muitas aspas –, podiam ser vários atores a fazer aquilo. Mas no final percebemos que tinha mesmo de ser só uma voz. Então fizemos essa maldade àquele desgraçado do Paulo Pinto, que foi muito generoso e disponível. Demos-lhe de “presente” aqueles textos “fantásticos” para ele ler. Foi assim uma construção até determinada altura, quando fixámos o modelo, o argumento, no fundo a estrutura que se  vê agora no filme. Não sei se guiar é uma boa palavra, mas era a voz que tinha de guiar o filme todo.

Rosinha e Outros Bichos do Mato © Três Vinténs

KPN: Grande parte do filme é a montagem dos arquivos e das fotografias e dessa iconografia que mostra, como é dito no filme “os povos das colónias nas suas aldeias falsas e os portugueses na sua variedade regional”. Como é que fizeram essa montagem e curadoria de uma informação de modo a dar novo significado ao arquivo utilizado? 

MP: Nós juntámos o material todo de arquivo, o máximo possível. Às vezes queixamo-nos muito dos arquivos mas, neste caso, foram muito abertos e muitos generosos. De facto, é um material muito delicado, não é para andar a circular por aí. Nesse aspecto, foram mesmo muito sensíveis e disponíveis. Tínhamos essa responsabilidade com o material, e havia muito dele produzido na Exposição Material do Porto de 1934 que nós, porque tivemos financiamento, conseguimos ir adquirindo. Os postais feitos para a exposição, muitas revistas, alguns livros, os guias, os roteiros, os mapas, as brochuras. Tendo esse material, fizemos a curadoria e fomos articulando com as questões todas que queríamos pôr. Nós achámos que tínhamos de começar o filme por isso: “e se o filme começasse como se fosse um documentário sobre a Exposição, para depois sair daí?”. É por isso que ele começa com um lado de mostrar muito o arquivo. 

Depois, “e se o filme fosse só sobre a Exposição Colonial de 1934? Como é que mostraríamos?”. Mostraríamos as imagens em movimento e fazíamos esse questionamento do que está ali. Mostraríamos o material fotográfico e daí partiríamos para os outros materiais. Tentámos dar algum sentido àquela riqueza e muito material visto de uma forma que ainda é pouco vista como arquivo, especialmente o material sobre as mulheres, as quais, neste caso posso mesmo dizer, são o objeto de olhar e que circulam como objetos exóticos. Havia muitas camadas que tínhamos de desconstruir a partir do arquivo. 

Quisemos começar pelo material que tínhamos e pelo material do jornal. É muito engraçado, num evento, haver assim um jornal como o do Comércio do Porto Colonial, que estava montado no próprio recinto da informação para reportar o quotidiano. Tivemos de tirar sentido do material e ver como é que ele estava a comunicar connosco. Depois disso, veio tudo o resto, desde a música, as encenações e começámos a fazer essa desconstrução e questionamento do que é que eles estavam a encenar, o que é que as fotografias estavam a mostrar. Foi daí que partimos e o filme explodiu para as outras ideias, recuso-me a dizer a palavra… “ficções”!

KPN: Tinha algum receio em usar essa palavra, mas queria muito tocar no assunto das encenações. São muito teatrais, na reencenação dos bailarinos, ou quando a Binete Undonque apresenta-se enquanto Rosinha, ou com as minhotas. As expressões parecem-me tão bem trabalhadas, o ar reverente e obediente vs. o ar soturno em outras partes. Como é que foi trabalhar com os actores numa obra tão informativa, que busca a ressignificação dessa informação? 

MP: Foi exatamente como se estivéssemos a fazer uma dramaturgia. Foi tudo pensado como uma encenação. Se calhar, neste caso, mais ligado ao teatro porque parecia-nos que uma exposição seria mais aproximada a isso. Tivemos de refletir sobre a exposição colonial, o que eles expunham e como expunham. E havia a ideia, já noutra versão muito antiga do argumento, de reconstruir a exposição. Uns stands, montar umas aldeias, essas coisas todas. Isso foi sendo depurado e percebemos que tinha de haver um trabalho performático e de encenação, mais próximo do mundo teatral e da dança. Nós trabalhámos com uma coreógrafa, a Joana Bergamo, para refletir e trabalhar sobre a peça de Jean Philippe Rameau, Os Selvagens, que remonta também a uma história colonial comum ao colonialismo europeu. A partir dessa peça, tentámos  pensar quais são as várias versões.

O caso das minhotas foi muito específico. Houve um contacto direto com o Grupo Etnográfico da Areosa, um grupo muito aberto e que percebe estas questões. Elas foram muito corajosas em aceitar o trabalho. Nós falámos muito e elas acharam muito importante falar destas questões relacionadas com o racismo e desconstruir estas ideias feitas do que é a etnografia, o típico, a representação, o que é um português. Aquilo que estava presente, dos portugueses a aprenderem o que um português deveria ser, que foi uma ideia também muito explorada no Estado Novo e que ainda hoje se sofre com isso.

A solenidade é uma solenidade do próprio grupo, por isso isso foi muito fácil. Aquilo é tudo muito precioso, elas fazem tudo de uma forma muito preciosa e muito precisa, muito profissional. Aí não tive de fazer nada. O que faz parte do trabalho de quem olha e de quem cria é aquilo que eu e a coreógrafa precisámos ver como é que elas faziam e inspiramo-nos no próprio trabalho etnográfico tradicional para ver como podia ser feito.

Com a Binete, foi mais direto, porque ela é uma atriz profissional, tem feito muito trabalho no teatro e agora também no cinema e, até pelos trabalhos que ela tem desenvolvido, reflete muito estas questões. Foi outro tipo de trabalho.

Com os miúdos [da peça Os Selvagens], foi ainda outro tipo de trabalho porque foram alunos da própria coreógrafa. Percebemos como é que eles se relacionavam, que contacto é que tinham com as questões do que é ser português, do que não é, questões raciais e étnicas. O universo deles foi sempre como alunos de dança e era aí que eles estavam, e pusemos-los em confronto com uma realidade que eles não faziam ideia de ter acontecido, de ter havido zoos humanos no Século XX – para mim é chocante mas eu nasci mais perto, nesse século. Eles, nascidos no século XXI (isto continua a causar mesmo muito espanto), repudiaram aquilo, mas perceberam que há muita gente que se calhar não acha aquilo assim tão repugnante como é. Eles perceberam que ainda é uma realidade e que no futuro ainda terão de lutar contra isso. 

Rosinha e Outros Bichos do Mato © Três Vinténs

KPN: Passando às últimas cenas no museu de ciências naturais. É muito adequado acabar o filme num sítio cuja tarefa é, de certa forma, embalsamar o tempo, literalmente. Num dos últimos planos, as duas narradoras olham para os esqueletos de primatas — há alguma mensagem mais profunda ou filosófica que tentou passar com esse plano? Outra questão relacionada é se vê este filme também como uma tentativa de embalsamar aquele tempo, especialmente numa altura em que estes temas seculares, que sempre estiveram presentes, ressurgem com ainda mais força atualmente.

MP: O museu é o Museu de Ciência da Universidade de Coimbra. Aquilo é a secção zoológica, é um museu que está em transformação como muitos, e é aliás isso que digo no filme. Sempre tivemos a ideia de acabar com um museu e com essa ideia da taxidermia não só para falar com esse “bicho empalhado”, mas para questionar sobre o que é um museu e o que pode ser um museu na e para a memória futura. Não é uma coisa fechada e há coisas que podem ser desconfortáveis para nós, não só com o animal embalsamado. Mas é pensar como é que nós pensamos no passado, como é que pensamos essa informação, porque estou convencida que não é deitando as coisas fora, não é escondendo, não é reescrevendo, não é deformando. É dando mais informação, mostrando mais. Estar em constante pensamento e em constante movimento. É isso que aquele museu especificamente está a fazer. O último plano é com as caixas numa sala, que não foram valores de produção, não fomos nós que pusemos aquilo lá. Aquilo era a seção antropológica do museu porque ele estava em obras e estava tudo empacotado. Encaixotar, guardar, tirar do olhar. Ali é transitório, porque aquilo está encaixotado para se repensar como é que se pode voltar a dar a ver. Isso é o mais importante — voltar a dar a ver e estar em constante reflexão. O que é que isto significa, o que pode significar, como é que nos relacionamos com o passado, como é que voltamos a trazer o passado para dialogarmos. Acho que o Museu é isso e tem de ser isso. 

Tento não pôr essas questões — é claro que filmámos os esqueletos dos primatas mas não tenho resposta para se é metafórico ou não. Foi uma coisa muito prática e às tantas é o lado daquele cineasta prático e infantil que tem de haver: “que bonito que isto é, vamos fazer um plano assim, vamos ver se funciona e se depois nos vai trazer algum sentido”.  E algum sentido trouxe porque aquele plano esteve sempre ali e foi sempre pensado com aquela versão da música em piano, que remete automaticamente, pelo menos para mim, para uma coisa mais de salão, do século XIX e que combinava muito bem com aquilo, mas não houve essa questão. É claro que nós pensámos… é claro, esqueletos de primata, o que é isto vai dar? Mas avancemos! Tentámos deixar muitas coisas em aberto para que haja diálogo com o filme. 

KPN: Falou muito da questão etnográfica presente no filme – quais, se houver, realizadores ou tentou transpor para este filme.

MP: Ah, nunca expor os nossos mestres…! Com certeza que sim. Mas posso dizer outra coisa. Há muitos realizadores portugueses que fizeram trabalho e que não conseguiram fazer mais por diversas razões e há uns que foram esquecidos e que de vez em quando são recuperados. Um deles é o António Campos. Falo dele porque durante muito tempo pouco se falava nele ou falava-se como cinema amador. Não tenho formação em etnografia nem antropologia — há muitos realizadores portugueses que têm essa formação, a minha é em cinema, mas lembro-me do António Campos porque durante muito tempo falou-se nele como alguém secundário. E, às vezes, isso prejudica o nosso olhar sobre o país. Tem de se olhar, nem que seja para se recusar. Por isso, falo do António Campos. Falemos de António Campos.

Kenia Pollheim Nunes

[Fotografia em destaque: Rosinha e Outros Bichos do Mato © Três Vinténs]

Rodeo: And this bird you cannot change

Chega-nos como um trovão, que arranca do asfalto a poeira e nos colhe numa energia feroz. Rodeo (2022), a primeira longa-metragem de Lola Quivoron que conquistou Cannes na seleção Un Certain Regard, estreou em Portugal na competição internacional do Indie Lisboa.

O filme constrói-se em torno de Julia (Julie Ledru), rebelde sem causa e sem casa, que procura ganhar notoriedade no mundo do cross bitume dos subúrbios parisienses. A mota é o seu paliativo, na aridez do quotidiano onde a violência é a linguagem e a dor aniquila o medo. Habituada a ser empurrada para dentro e para fora, Julia surge destemidamente à procura de um lugar num meio onde a masculinidade tem uma octanagem tóxica e os motores rugem para o horizonte longínquo. 

Rodeo, Lola Quivoron  © Les Films du Losange

O filme de Lola Quivoron recorda-nos a fisicalidade inerente à matriz do cinema, através de uma predominância acrobática de movimentos e de forças que atravessam os corpos em direção ao nosso olhar, de forma inovadora, num universo sintomático de westerns e easy riders. Rodeo é uma fábula ou um conto de estrada, que, apesar da previsibilidade e trama acanhada, conjuga a crueza de uma realidade dominada pelo masculinismo tóxico com a força transgressora de um corpo livre que não faz reféns. Filmado com lente anamórfica, a partir de dentro, isto é, de uma relação autêntica com os membros desta comunidade, Rodeo é um gesto fresco e franco no modo como documenta o realismo dos corpos ao mesmo tempo que constrói a sua própria mitologia.

Rodeo, Lola Quivoron  © Les Films du Losange

A volatilidade motriz de Julia surge ex-machina arrastando consigo simulacros de figuras maiores do que a vida, portadores da mesma luz comovente e sombria, como Gloria (John Cassavetes) ou Thelma & Louise (Ridley Scott), e guia-nos por uma estrada sem horizonte, de familiaridade aparentemente, onde reaprendemos tudo sobre a liberdade. 

Entrevista com Lola Quivoron no IndieLisboa

Lisboa, 28 de Abril de 2021

Lola Quivoron  © Direitos Reservados

Sebastião Casanova: Fala na beleza da indefinição e no modo como o que foge ao controlo lhe é tão atraente. Quando vejo a forma como Julia conduz, imagino que seja disso que se está a falar. Como é que se gere esse desejo incontrolável durante as filmagens?

Lola Quivoron: Eu quis que este filme tivesse uma abordagem do tipo documental. Assim, o equilíbrio entre o que está escrito e o que não está existe sempre em movimento. Acredito realmente que o movimento é essencial à criação, e especialmente neste filme foi o centro de tudo, porque o movimento é o corpo dos atores, e eu concentrei-me em seguir os movimentos corporais o tempo todo. Neste filme os corpos expressam muito, até mais do que as palavras. É como um olhar sobre os corpos e como eles podem ser mais do que o físico, por isso há muitas camadas do que um corpo é em termos de representação. Para responder à pergunta, todas as sequências foram escritas e realmente preparadas, decidimos isolar-nos com os atores para preparar todas as sequências e definir o guião e improvisamos muito, reescrevi muito com eles. Depois no set, quis que libertassem toda a energia para filmarmos e por vezes era até demais.

SC: Julia carrega em si uma força maior que a vida, por vezes quase erótica, especialmente quando se relaciona com as motos que rouba, e simultaneamente lúgubre que brilha dentro dela como uma estrela. Esse corpo, como a música de abertura “Corpo Sujeito”, não pertence aqui, é demasiado raro para a Terra. Não há nada que possamos fazer, apenas aprender. O que isso deveria nos dizer?

LQ: Trata-se de ser um sujeito e não um objeto. Estamos habituados a ser objeto de olhares, aprisionados em definições estanques como corpos, pessoas, seres humanos, e o filme procura destruir esse tipo de representação. Julia (Julie Ledru) está sempre a lutar contra os olhares, em termos de repressão, sejam olhares sedutores, de um mundo dominado por homens ou talvez de um tipo fantasioso perturbador. Ela luta com a mota e com a paixão por conduzir. A mota é a extensão do seu corpo, uma maneira de se elevar. Ela encontrará uma maneira de ser livre disso e ser apenas movimento em cima da mota, soltando-se do aprisionamento dos olhares, da representação e da definição. O nickname de Julia é unconnue, o desconhecido, e é sobre como ser livre e não definida como uma mulher, por exemplo. Porque é um personagem que está realmente entre mundos, entre o espectro da representação de género, entre o mundo dos mortos e dos vivos, dos sonhos e da realidade. Por isso é livre, e sim, aprendemos sobre a experiência corporal, sobre esse ser humano que atravessa uma comunidade e quer estar no topo, ser uma lenda, ser reconhecida.

SC: Uma das coisas que mais gostei foi a visão que o filme nos dá ao estabelecer uma relação física com o espectador através da manipulação destas máquinas poderosas como se fossem a última coisa na vida, analogamente ao próprio ato de filmar. E claro, as várias referências ao cinema: a relação entre o asfalto e o deserto, as motos e os cowboys, cavalgando pelo horizonte sem medo da morte. Fez-me pensar que Julia subverte o próprio imaginário com sua moto, assim como um realizador possa ter de fazer quando filma.

LQ: Eu trabalho com arquétipos, mas não com figuras concretas retiradas de filmes. Não existe o equivalente (de Julia) ou um tipo que se possa distorcer. Mas talvez tenha pensado no Travis, o personagem principal de Taxi Driver, que é muito sombrio, misterioso, violento e amoral. Não existe personagem feminina equivalente, então pensei bastante nele para construir Julia, porque queria que ela não fosse sedutora, irreverente, violenta, e com muita raiva dentro dela. Também queria que ela fosse misteriosa e que não explicasse muito. Uma personagem sombria. Mas acho que é muito importante construir novas representações, e estou realmente conectada às teorias queer e como criar imagens dissidentes feitas com elementos que conhecemos, como clichês, estereótipos e arquétipos, mas distorcendo-os em representações plurais, novas formas, novas visões, novas emoções. Acho que Julia é o exemplo perfeito disso porque tem muitas camadas dentro das representações normativas, porque ela está entre géneros. Podia desempenhar ambos os códigos masculino e feminino, mas onde ela está realmente é entre os dois. E acho que o mais importante no filme é o que ela tem dentro dela, a sua subjetividade e a sua voz interior espiritual, e o facto do o corpo ser uma espécie de armadilha, do qual ela se quer ser livre, porque somos mais do que apenas corpos.

Sebastião Casanova

[Fotografia em destaque: Rodeo, Lola Quivoron  © Les Films du Losange]